Bahia

Energia eólica

Instalação de empreendimento eólico ameaça comunidades tradicionais em Canudos

Comunidades de fundo e fecho de pasto denunciam descumprimento de legislação ambiental na instalação de empreendimentos

Salvador |
Complexo Eólico de Canudos é um dos exemplos de empreendimentos que impactam sobre comunidades tradicionais da Bahia - Rafael Martins/AFP

Em 2022, as comunidades de fundo e fecho de pasto foram alvo de 43% de todos os conflitos no campo registrados na Bahia, de acordo com o caderno Conflitos no Campo Brasil 2022, estudo anual realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). As ameaças e violências de todos os tipos contra os povos tradicionais não é, infelizmente, nenhuma novidade. Ainda de acordo com o levantamento da CPT, a Bahia, pelo segundo ano consecutivo, segue como o terceiro estado com maior registro de conflitos no campo do país.

Reconhecidas pela Constituição do Estado da Bahia de 1989, os fundo e fecho de pastos são comunidades tradicionais que se baseiam no uso comum da terra e preservação da Caatinga. Mesmo com os territórios assegurados no contrato de concessão de direito real de uso, as áreas têm sido recorrentemente invadidas pela mineração e, mais recentemente, pelos empreendimentos eólicos.

É o que vem acontecendo em Canudos. A região, desde o Brasil Império, é vítima de uma série de impactos causados pelas hidrelétricas, latifúndios e, agora, pelos empreendimentos de energia eólica. Em 2019, começaram os primeiros estudos para a implementação do Complexo Eólico Canudos, da empresa Voltalia Energia do Brasil, na região do Raso da Catarina e do povoado do Bom Jardim. Associações de comunidades de fundo e fecho de pasto, com apoio de organizações da sociedade civil, denunciaram o descumprimento das legislações ambientais.

Licenciamentos

Em abril de 2023, em decorrência de ação ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), a justiça suspendeu os efeitos das licenças prévias de instalação e de operação concedidas pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) no procedimento de licenciamento. Porém, em 24 de julho, uma decisão de segunda instância, assinada pela desembargadora federal Ana Carolina Roman, autorizou a retomada das atividades.


Associações apontam que Complexo Eólico de Canudos tem impactado em onze diferentes comunidades e mais de 600 famílias / Rafael Martins/AFP

Para a equipe da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), que tem assessorado as comunidades de fundo de pasto, essa decisão é muito preocupante tanto pelos impactos que trará para as comunidades locais e para o ecossistema da região quanto por emitir uma mensagem para as empresas de que elas podem infringir as legislações ambientais.

A advogada Beatriz Cardoso, da AATR, explica que o juiz, na primeira instância, havia concedido o pedido para que o empreendimento fosse paralisado reconhecendo que o órgão ambiental responsável não fez o licenciamento conforme previsto na legislação. “O INEMA conduziu o licenciamento ambiental considerando o empreendimento como sendo de médio impacto, quando na realidade se trata de uma das exceções previstas na legislação em que o empreendimento passa a ser considerado de alto impacto”, ressalta.
 
O Brasil de Fato Bahia entrou em contato com o INEMA, porém não obteve resposta até o fechamento da matéria.

A legislação baiana prevê que empreendimento eólico em áreas que possam gerar impactos socioculturais diretos que impliquem a inviabilização de comunidades e áreas de ocorrência de espécies ameaçadas de extinção ou de endemismo restrito, ou seja, de espécies só encontradas naquele lugar devem realizar o procedimento completo de licenciamento ambiental. Neste caso, é obrigatório o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), além de audiências públicas com as comunidades impactadas.

Canudos se enquadra nesses dois casos. Lá são encontradas as comunidades de fundo e fecho de pasto, com suas tradições e culturas próprias há pelo menos 300 anos. A região também possui uma vasta flora e fauna características da caatinga, o único bioma exclusivamente brasileiro. É onde está a arara-azul-de-lear, espécie em extinção que existe apenas no Raso da Catarina, que se tornou reserva ecológica em 1984 e estação ecológica em 2001.

Para Beatriz Cardoso, a decisão da segunda instância é incoerente justamente porque, apesar de reconhecer que o licenciamento do INEMA foi feito de forma equivocada e recomendar que estudos complementares sejam feitos, emite a mensagem de que não há nada mais que possa ser feito, uma vez que as obras já estão bastante avançadas.

“O empreendimento já está praticamente todo concluído e vai começar a operação mesmo com o reconhecimento por parte do judiciário de que foi feito o licenciamento fora dos parâmetros legais. Essa decisão precisa ser revertida para que não seja uma referência violadora de direitos para outras situações. O sistema de justiça não acompanha o tempo do empreendimento. A empresa acelera as obras, se consolida no local. Tem o capital para fazer isso. Quando o sistema de justiça vai julgar a decisão já parte dessa ideia de que é um fato consumado, já está muito avançado e que os estudos feitos já seriam suficientes”, pontua a advogada.

A advogada aponta ainda um outro aspecto com relação aos empreendimentos eólicos que precisa ser superado: a imagem construída ao redor deles de que, por serem energias renováveis, “limpas”, não causam impactos. “A grande blindagem dos empreendimentos eólicos é essa imagem de que são empreendimentos de baixo impacto. Parece que é só um catavento inofensivo. Isso não é verdade, há toda uma estrutura por detrás”, pontua Beatriz.

Impactos

Estima-se que mais de 600 famílias de 11 comunidades de fundo e fecho de pasto já estão sendo impactadas pelo Complexo Eólico Canudos, mesmo antes de ser iniciada a operação. Apesar de as informações emitidas pela empresa Voltalia Energia do Brasil sinalizarem que a área de construção do empreendimento abrange apenas o Raso da Catarina e o povoado de Bom Jardim, em Canudos, a AATR afirma que há um subdimensionamento das comunidades impactadas.


A arara-azul-de-lear é uma espécie em extinção que, atualmente, só existe no Raso da Catarina, ao lado do Complexo Eólico de Canudos / Rafael Martins/AFP

Moradores das comunidades denunciam uma série de situações, como desmatamento de áreas extensas, assoreamento dos rios, soterramento de nascentes e lençóis freáticos. Relatam que muitos pássaros estão sendo encontrados mortos, porque se chocam com as hélices dos geradores e que essas perdas causam um desequilíbrio ecológico. Contam ainda que a abertura das estradas causou a destruição completa de várias vias que eram utilizadas tradicionalmente pela população local. Também denunciam processos constantes de grilarem de terra e a intensificação dos conflitos ambientais relacionados com a violência contra as lideranças.

Para Beatriz Cardoso, os danos causados às comunidades que estão direta e indiretamente na área em que as empresas se instalam são de diferentes dimensões. “O primeiro dano é na negação do direito à informação. Quando as comunidades se dão conta do processo de instalação dos empreendimentos, os projetos já estão avançados, já existem autorizações dos órgãos públicos. Isso comunica às famílias que aquilo é irreversível, que não tem mais jeito. Ter acesso aos dados, saber os impactos reais, áreas atingidas é direito e tem sido violado sistematicamente”, reivindica a advogada da AATR.

Segundo a associação, no caso do Complexo Eólico Canudos, não foram realizadas pelo INEMA as consultas livres, prévias e informadas, que estão previstas na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Outros impactos têm a ver com os custos sociais que as comunidades precisam arcar. Entre esses custos, estão o aumento dos preços dos alugueis, a especulação imobiliária sobre o preço da terra, a sobrecarga dos serviços públicos que já são precarizados, os danos às estradas que são efeitos do tráfego de caminhões e outros veículos de carga, entre outros. “São custos que recaem sobre as comunidades. Muito antes das comunidades perceberem que ali vai ser instalado um empreendimento, já se percebe aumento do cercamento da área, aumento do preço da terra, pessoas estranhas se dizendo donas da terra e aparecendo com títulos”, conta Beatriz.

A desarticulação do tecido social é outro impacto direto vivenciado pelas comunidades tradicionais em decorrência da instalação destes tipos de empreendimentos. “É muito comum que as empresas adotem uma estratégia de assediar individualmente os moradores, que façam promessas às famílias e que exijam que a família não publicize o que foi falado com ela para outras. No caso das eólicas, muitas vezes são feitos contratos com causa de sigilo, o que dificulta bastante a organização comunitária. Essa ruptura nos tecidos sociais das comunidades é um impacto muito perverso”, diz a advogada.

Violência no campo

O aumento da violência é outro impacto direto. A AATR relata que acompanha uma série de casos de lideranças comunitárias que, por fazerem o enfrentamento à forma como os empreendimentos energéticos e de mineração são instalados no território, sofrem tentativas de retaliação e muitas vezes precisam sair do território para garantir sua segurança. Algumas lideranças procuradas pelo Brasil de Fato para falar nesta reportagem, por exemplo, preferiram não se expor, com medo de represálias.

De acordo com o caderno Conflitos no Campo Brasil 2022, houve aumento de mais de 16% de casos registrados pela CPT na Bahia em relação a 2021, índice bem superior ao nacional (10,39%). Na Bahia, os conflitos por terra representam a grande maioria, com 156 registros e o envolvimento de mais de 8.700 famílias.

O estudo aponta que, no Brasil, são os povos indígenas que mais sofrem com os conflitos no campo, seguido pelos assentados. No entanto, na Bahia, tem crescido o número de conflitos que vitimizam as comunidades de fundo e fecho de pasto. Estas comunidades são formas de ocupação do território típicas do semiárido baiano e não existem em outras partes do país, em que as famílias utilizam áreas comuns para criar o gado (bovino, ovino e/ou caprino) solto. São comunidades diversas, muitas vezes compostas por indígenas, quilombolas, ribeirinhos, entre outros.

Edição: Gabriela Amorim