Em Correntina (BA), comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto denunciam que, na semana passada, seis homens armados rondavam os territórios em motocicletas, próximos ao local onde, em abril, três fecheiros foram alvejados. De acordo com lideranças locais, os pistoleiros estariam ligados a empresários do agronegócio da região.
A pouco mais de 200km dali, no município de Luís Eduardo Magalhães (LEM), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu hoje (06) a Bahia Farm Show, maior feira de agronegócio do norte e nordeste. O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, também esteve presente à feira e, em seu discurso na abertura do evento, defendeu a “convivência” entre o agronegócio e a reforma agrária popular.
“O Lula traz os dois ministros [da Agricultura e Pecuária e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar] para demonstrar que é possível uma unidade no campo, que é possível o segmento do agro e o segmento da agricultura familiar e da reforma agrária produzir, matar a fome, fazer o combate à pobreza”, disse Jerônimo Rodrigues.
Em seguida, o discurso do presidente Lula também trouxe um tom de conciliação entre agro e agricultura familiar. “[Uma] polêmica que eu acho maluca é o pequeno proprietário e o agronegócio. São duas coisas totalmente necessárias ao país. Não há rivalidade. Não há por que o preconceito do grande contra o pequeno ou do pequeno contra o grande. O Brasil precisa dos dois”, disse o presidente.
Conflitos no campo
De volta a Correntina, comunidades e movimentos populares apontam um histórico de conflitos entre o agro e os pequenos agricultores tradicionais que se arrasta há décadas. “No oeste do estado, região das Comunidades de Fechos de Pasto, o agro é um monstro selvagem, que chega invadindo os territórios, as áreas de uso dos Fecheiros, onde criam o gado e fazem uso extrativista, com ameaças de morte aos trabalhadores que ali vivem secularmente”, conta Valdivino Rodrigues, integrante da Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto.
Cleidiane Barreto, militante do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e também parte de uma comunidade de fundo e fecho de pasto, conta que, logo após os dois atentados em 11 de abril no município de Correntina, a Secretaria Estadual da Casa Civil esteve presente para prestar solidariedade às comunidades e encaminhar ações para a região.
O Governo do Estado informou, à época, que atuaria de maneira articulada, promovendo ações para combater tais conflitos envolvendo as secretarias de Segurança Pública; Justiça e Direitos Humanos; Promoção da Igualdade Racial; e Desenvolvimento Rural. No entanto, o MAB pontua que tais ações não avançaram. “Os mandantes e os executores desse crime contra os fecheiros seguem impunes, e a impunidade gera um cenário em que é possível fazer novamente, que a vida das pessoas está em risco”, destaca Cleidiane.
Uma liderança local, que prefere não se identificar por medo da violência na região, afirma que logo após a saída da polícia especializada, os pistoleiros voltaram a circular livremente pela região. “Os trabalhadores recuaram com medo. Eles retiraram o gado [dos pastos comuns] com medo de perder os animais. Só um criador perdeu 18 cabeças de gado”, conta. “Os trabalhadores seguem acuados”, complementa.
O MAB aponta que, para além das pessoas diretamente ameaçadas de morte na região, há a ameaça indireta a todos os trabalhadores e trabalhadoras que se sentem inseguros de seguir na lida com o gado, trabalho secular que caracteriza essas comunidades. “Há um mar de insegurança, de as pessoas de terem medo de andar dentro da própria comunidade, de fazer uma prática que é secular, como a solta do gado, porque a qualquer momento podem ser atacados”, pontua Cleidiane Barreto.
Regularização e grilagem
Movimentos e comunidades apontam a falta de regularização fundiária como principal fato de conflitos na região oeste da Bahia. As comunidades de fundo e fecho de pasto, muito presentes na área, se caracterizam pelo uso comunitário de grandes áreas para criação de gado bovino e caprino à solta. “Na verdade, onde existe Cerrado em pé é justamente nos territórios das comunidades tradicionais, onde eles [empresas de agronegócio] estão avançando cada vez mais, e o povo ficando encurralado”, diz a liderança que prefere não se identificar. E pontua que o avanço do agronegócio resultou no desmatamento e contaminação de grandes porções do Cerrado.
Essas áreas de pasto comum são reivindicadas pelas comunidades como territórios tradicionais. Atualmente, há 195 processos de demarcação de territórios de fundo e fecho de pasto em andamento na Bahia. Na região, também se registram conflitos com comunidades quilombolas que igualmente aguardam a demarcação e titulação de suas terras.
“A ausência de Regularização Fundiária dos territórios tradicionalmente ocupados pelas Comunidades Tradicionais de Fundos e Fechos de Pasto é a principal causa dos conflitos socioambientais e territoriais, que preocupa as nossas Comunidades”, defende Valdivino Rodrigues. Ele explica que há uma forte pressão de setores do agronegócio e, mais recentemente, também da mineração e energias renováveis, para o não reconhecimento do direito à posse de terras dessas comunidades.
Aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação direta de inconstitucionalidade à lei estadual 12.910/2013 que impõe o Marco Temporal de dezembro de 2018 para que as comunidades de fundo e fecho de pasto pudessem solicitar o reconhecimento de seus territórios. O julgamento da ADI 5783 chegou a entrar na pauta do STF por duas vezes em maio deste ano, mas foi retirado sem apreciação.
Embora os governos estadual e federal se esforcem para diminuir, pelo menos nos discursos, os conflitos entre agronegócio e agricultura familiar e tradicional, as comunidades e movimentos populares apontam as contradições. “O que é mais angustiante é o povo ficar aqui à mercê do Estado, e os governos de braços dado com o povo do agro, que tá matando os trabalhadores”, desabafa a liderança de Correntina, que prefere não se identificar por medo de represálias.
Edição: Alfredo Portugal