Bahia

Coluna

No Natal, quero comer peru

Imagem de perfil do Colunistaesd
O texto de Mário não é sobre a morte de um pai, tampouco sobre perus de Natal, mas destaca alguns absurdos de um patriarcado genuinamente brasileiro - Foto: Divulgação
Em uma sociedade movida por mulheres, é importante que todas possam comer “peru de verdade”

Inicialmente, vale falar de onde tirei esse título. Não, não tenho tamanha genialidade para, em uma frase, anexar uma micro história. O “no Natal, quero comer peru” está em um dos escritos de Mário de Andrade, no conto “O peru de Natal”. Não tão triste com a morte de seu pai, Juca, que tinha fama de “doido” e, por conta disso, sua família relevava todas as suas peripécias, aproveitou o Natal para pôr um fim no luto de sua família. Questionando a tamanha centralidade que tinha a figura do patriarca e a sua aura “cinzenta”, Juca dirige-se à sua mãe: “Bom, no Natal, quero comer peru”. Daí armou-se um espanto: como poderiam comer peru, ou seja, como poderiam fazer um encontro festivo e familiar diante de pouco tempo da morte do pai? “Mas quem falou de convidar ninguém! Essa mania... quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...”. “Meu filho, não fale assim...”. “Pois falo, e pronto!”

A questão levantada por Juca nos parece um tanto afrontosa, mas tem sentido. Principalmente nos Natais das famílias das classes médias brasileiras que, abonadas só na fantasia, não têm dinheiro para terceirizar o trabalho com o banquete e acaba sobrando para as mulheres da casa – ou para as empregadas domésticas que se matam para satisfazer os caprichos da patroa e, quase sempre, não ganham um centavo a mais por isso, mas não é o meu foco aqui.  Ao ler o conto de Mário de Andrade, refleti bastante sobre quem [de fato] comia o peru no Natal. 

Eu que sirvo!

Continuemos com Juca. Nosso personagem tomado de empréstimo disse que, naquele Natal, não queria convidar ninguém. Afinal, era uma festa que só tivera dois vitoriosos: o pai e o peru. A mãe, a tia e a irmã se matavam de trabalhar para abrilhantar um jantar sem espaço para outros protagonismos. O peito do peru? Era para o pai e para as visitas, “a parentada do d...”; as partes menos nobres ficavam para as mulheres. “Era só no dia seguinte que mamãe e titia ainda provavam um naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo”. Aquele peru, daquele fatídico Natal, “comido a sós”, na ausência do patriarca e de outros parentes, “naquela casa de burgueses bem modestos”, pela primeira vez teve seu peito cortado em fatias amplas e pôde ser comido por todos, sem distinção. 

Acostumada a observar famílias de “burgueses bem modestos”, foi impossível relembrar situações em que presenciei essa desonesta divisão do peru e as infinitas vezes que ouvi sobre a preferência feminina pelas partes com ossos das aves em geral. Será que procede? Não posso afirmar sem uma pesquisa profunda. Porém, em casas que “mamãe sempre serve”, não é difícil se acostumar com partes mais macias e suculentas de qualquer assado. No único Natal em que a mãe de Juca não serviu, sobre ele pairou uma única preocupação: “Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! Mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!”

Em uma sociedade movida por mulheres, é importante que todas possam comer “peru de verdade” várias vezes na vida. Às vezes é preciso um certo esquecimento de outros “parentescos distraidores”. Se o espírito Natalino, além de demandar consumo, demanda amor, que esse amor seja a cada ano “reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si”. O texto de Mário não é sobre a morte de um pai, tampouco sobre perus de Natal, mas destaca alguns absurdos de um patriarcado genuinamente brasileiro.

 

Edição: Lorena Andrade