“Se estiver muito pesado para você, vai, se deixa ir, porque é muito ruim viver esse incômodo, e lutando dessa forma que você está lutando”. A declaração de Gilberto Gil, para sua filha Preta Gil, revelada por ela em uma entrevista, gerou grande repercussão nas redes sociais e na mídia. Os juízos de valor emitidos variaram desde os que o consideraram um “pai desalmado” diante da vontade de viver da filha, adoecida com um câncer, até os aplausos pela concepção “espiritualmente evoluída” do cantor. O fato é que o debate trouxe à cena nossa forma de lidar com a finitude do corpo físico, o desencarne e as estratégias de cuidar de uma pessoa que tem uma doença que ameaça à vida e tem poucas perspectivas de cura.
Preta Gil foi diagnosticada com câncer de intestino em 2023, realizou cirurgia para remoção do tumor e finalizou o tratamento com êxito, após reconstrução de parte do trato intestinal. Recentemente, teve recidiva, o retorno da doença, com metástases para linfonodos, peritônio e lesão de ureter. Segundo especialistas como Mauro Donadio, das Oncoclínicas São Paulo, a recidiva é relativamente comum, mas cada tipo de câncer apresenta um padrão de recidiva e exige novo tratamento.
As discussões sobre o adoecimento da cantora revelam um cenário complexo no país. Pouco se debate no Brasil a educação para a morte, os direitos dos pacientes com doenças graves, as alternativas de tratamento humanizado que aliviem a dor sem impor sofrimento psíquico para todos os envolvidos no cuidado.
O agravamento de uma doença incurável e a ineficácia de recursos terapêuticos que geram fortes efeitos colaterais, são alguns dos fatores que indicam os cuidados paliativos. O objetivo é oferecer conforto, qualidade de vida e aliviar o sofrimento do paciente, equilibrando o tratamento da doença com o cuidado integral da pessoa e seus familiares. Segundo os especialistas, se trata de uma assistência que objetiva a melhoria do padrão de conforto vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença ameaçadora à vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento físico, social, psicológico e espiritual. O foco é o respeito à dignidade humana em todos os momentos da doença, selecionando terapêuticas que sejam adequadas, do ponto de vista de risco/benefício técnico e do ponto de vista da garantia da autonomia e respeito aos desejos e valores do paciente e de seus familiares. Nesse aspecto, também está contemplada a sua orientação espiritual, seja religião formal ou com base em princípios, nem sempre consensuais no grupo familiar.
Para o diretor médico João Gabriel Ramos, da Clínica Florence, especializada em cuidados paliativos em Salvador, a indicação dessa abordagem pode ser feita de maneira concomitante às terapias modificadoras da doença como a quimioterapia. “Os cuidados paliativos podem ser oferecidos em caráter ambulatorial, durante internamento hospitalar por outra situação de saúde, ou em modelo de hospice. em domicílio, ou em instituição específica para isso, como hospitais de transição, nas situações de sintomas mais complexos ou proximidade do fim de vida”, esclarece.
Os princípios básicos dos cuidados paliativos são: promover o alívio da dor e de outros sintomas; não acelerar nem adiar a morte; oferecer suporte para que o paciente viva tão ativamente quanto possível; ser iniciado o quanto antes, junto a outras medidas para prolongar a vida; afirmar a vida e considerar a morte como um processo natural; integrar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado ao paciente; melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente o curso de vida; auxiliar os familiares durante a doença do paciente e a enfrentar o luto.
“Cuidados Paliativos não é sobre deixar morrer, é sobre dar qualidade de vida e dignidade ao paciente, em qualquer situação, é preciso dialogar sobre novos conceitos, investir para acolher o paciente e sua família”.
Assistência integral
A equipe multidisciplinar paliativista, além de atuar junto ao paciente também trabalha com toda sua família para aliviar focos de angústia e oferecer suporte para o enfrentamento do estresse emocional. Através de discussão dialogada entre os familiares, o paciente, se estiver consciente, e a equipe técnica se busca um consenso para a tomada de decisão em conjunto sobre o melhor caminho a seguir.
A advogada e assistente social baiana Paula Giron Margalho, esposa de um paciente em cuidados paliativos, reconhece a partir de sua experiência, os benefícios desse tipo de assistência. “Cuidar de uma pessoa que amamos com cuidados paliativos, para mim, representa uma mudança no olhar. É aproveitar e exercitar, diariamente, a oportunidade de despedimento”, afirmou.
Dentre os desafios identificados para a eficácia do trabalho em equipe estão: a carência da formação especializada, os valores sociais vigentes diante da morte, a cultura médica em torno do tratamento e da finitude da vida e os fatores psicológicos que envolvem a família, os profissionais e o paciente.
O diretor médico do Instituto de Cuidados Paliativos da Bahia, Rodrigo Bittencourt aponta como dificuldade desconstruir a ideia do foco estar na doença para priorizar o paciente, oferecendo dignidade e qualidade de vida, independente das circunstâncias, do prognóstico. “É fundamental o alinhamento da equipe! As demandas são muito específicas para assegurar a qualidade de vida do paciente, a comunicação deve ser direta, a formação deve ser continuada com especializações e estudos, a psicoterapia para que os profissionais se fortaleçam emocionalmente é essencial”, afirmou.
Ele defende a educação continuada dos profissionais, a inclusão de Cuidados Paliativos como disciplina obrigatória na formação acadêmica de todas as profissões da área de saúde e a ampliação da abordagem para todos os níveis de atenção à saúde. “Cuidados Paliativos não é sobre deixar morrer, é sobre dar qualidade de vida e dignidade ao paciente. Em qualquer situação, é preciso dialogar sobre novos conceitos, investir para acolher o paciente e sua família”, destacou.
Avanços no cenário nacional
A abordagem dos Cuidados Paliativos ainda é incipiente no Brasil se compararmos com outros países. Os pacientes com doenças graves em geral não têm acesso desde o início do diagnóstico a uma equipe multidisciplinar capacitada para que eles sejam o foco do tratamento e não os sintomas da doença. Segundo a Organização Mundial de Saúde-OMS, a cada ano mais de 20 milhões de pessoas necessitam de Cuidados Paliativos ao final de suas vidas em todo o mundo. O total estimado é de 40 milhões, incluindo os pacientes no estágio inicial da doença. Segundo o Ministério da Saúde no Brasil cerca de 625 mil pessoas precisam de Cuidados Paliativos e a rede de serviços precisa ser redimensionada para atender a demanda.
Alguns serviços privados oferecem suporte, mas, no Sistema Único de Saúde (SUS) os cuidados paliativos só recentemente tiveram regulamentação específica. Os planos de saúde ainda não valorizam essa abordagem e não credenciam profissionais paliativistas.
Em Salvador, algumas unidades de saúde da rede pública e privada oferecem Cuidados Paliativos como os hospitais: Aristides Maltez, Hospital Universitário Edgard Santos (UFBA), Santa Izabel, San Rafael, Cárdio Pulmonar, Jorge Valente, Roberto Santos, Clínica Florence e Instituto de Cuidados Paliativos da Bahia. O antigo Hospital Couto Maia, no Bonfim, está sendo reformado pelo governo estadual para oferecer, exclusivamente, Cuidados Paliativos.
Os serviços pioneiros foram estruturados em 2014. A primeira enfermaria voltada a serviços de cuidados paliativos surgiu em 2015 no Hospital Santa Izabel (HSI), da Santa Casa da Bahia, a única unidade hospitalar na capital baiana a ter uma ala exclusiva para esse tipo de cuidado. O serviço é considerado referência no Brasil, e a instituição esteve entre as três de todo o país convidadas pelo Ministério da Saúde para participar da discussão de políticas públicas em cuidados paliativos.
Em 2016 chegou o primeiro curso na área e foi realizado o primeiro Fórum de Cuidados Paliativos pelo Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (CREMEB). A partir de 2017 foram realizados eventos denominados Café Paliativo Integrativo que promovem a troca de experiências entre as equipes e divulgam os serviços. O modelo aplicado para realização desse evento também serviu de inspiração para outras cidades, a cada mês, uma instituição de saúde organiza o encontro que serve para capacitar equipes.
Em novembro de 2022, o Conselho Nacional de Educação (CNE) homologou a inclusão dos Cuidados Paliativos nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Graduação em Medicina no Brasil. A intenção é que as novas gerações de médicos incorporem a lógica do tratar integralmente a pessoa, sem reduzir a vida humana a meros sintomas, fenômenos biológicos sujeitos à tecnologia médica.
A Política Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP) no SUS foi instituída pela Portaria do Ministério da Saúde GM/MS 3.681 de maio deste ano, prevendo consultas e exames encaminhados pela Equipe de Saúde da Família (ESF) com menos burocracia e grupos matriciais para atendimento humanizado. A expectativa do órgão é que 1.300 equipes sejam implantadas em todo o país, para permitir uma assistência especializada e humanizada. A intenção é estender para as regiões Norte e Nordeste os serviços que estavam concentrados no Sudeste, Sul e Centro Oeste, criando equipes multiprofissionais, disseminando informação e educação permanente e viabilizando o acesso a medicamentos e insumos para quem está em Cuidados Paliativos.
A nova medida chega após anos de mobilização popular e de segmentos de profissionais e organizações em todo o país que defendem a democratização do acesso aos Cuidados Paliativos, para proporcionar a todos uma morte digna.
Edição: Gabriela Amorim