Os legados que a metrópole carregou se configuram num obstáculo a mais
Gilberto Corso Pereira, professor Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA e coordenador do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles
Este artigo, em parceria com o Brasil de Fato Bahia, é parte integrante de um esforço da rede de pesquisa Observatório das Metrópoles (OM) de apresentar mais informações aos cidadãos brasileiros sobre as metrópoles do país antes da eleição. Desde 2022, o Observatório tem feito esforços de comunicar os resultados de pesquisas que vêm sendo feitas nacionalmente, não apenas nos espaços acadêmicos. É com esse intuito que, em 2024, foi elaborado o projeto nacional intitulado “Observatório das Metrópoles nas Eleições: um outro futuro é possível”, do qual participam os 18 núcleos metropolitanos que fazem parte da rede. Será publicado nos próximos meses um caderno – inicialmente em formato digital (e-book) – com todos os textos publicados desde fevereiro de 2024, para cada metrópole que faz parte do Observatório, facilitando ainda mais a ampla divulgação dos temas debatidos.
Considerando o passado e o presente que os dados recentes e as tendências atuais nos apontam, precisamos pensar perspectivas e possibilidades de superar os desafios que se apresentam. Em artigo de opinião anterior, tratamos do passado e do presente da metrópole. Dando continuidade ao debate, vamos exercitar pensar uma Salvador metrópole menos desigual e mais inclusiva, como um futuro possível.
Os legados que a metrópole carregou do seu passado e da contemporaneidade para as próximas décadas do século XXI se configuram num obstáculo a mais. Tendo como base estudos anteriores, já publicados, do núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles e os dados mais recentes disponíveis, podemos fazer algumas considerações, que devem ser entendidas como hipóteses plausíveis, sobre as tendências que configuram o futuro provável de Salvador, caso políticas públicas consequentes e articuladas, que possam vir a ser adotadas pelos próximos gestores públicos, não corrijam ou ajustem essas tendências:
Governança - Relativamente à gestão do território, persistirão as dificuldades por conta do padrão de governança metropolitana conflitiva que predominou nas últimas décadas, com pouca integração interinstitucional e entre entes de governo e ações e projetos contraditórios de governos estadual e municipais, sendo difícil ações e políticas coordenadas em áreas que têm abrangência extra-municipal como ambiente, transporte e mobilidade, habitação, saneamento. Todavia é importante considerar que a pandemia da Covid-19 mostrou que as instâncias municipal e estadual de governo podem atuar de modo cooperativo, mesmo na inexistência, ou inoperância, de instituições formais de governança metropolitana, desde que os objetivos políticos e administrativos tenham convergência;
Economia - A economia voltará a um cenário de estagnação econômica, caracterizado por: dificuldade de implementar velhos projetos; incipiente crescimento da economia popular; falta de projeto de desenvolvimento regional e de estratégias políticas. Ficou clara a necessidade de atuação coordenada do Estado para garantir as condições de funcionamento da Economia local, nacional e global. O crescimento da economia tenderá a ser mais endógeno, com o aumento da eficiência na utilização dos fatores convencionais de produção; para tanto, o aumento do estoque de conhecimentos será o verdadeiro motor do crescimento per capita, prioritariamente à acumulação de capital físico ou humano. Caberá aos gestores públicos introduzir incentivos para empresas ou indivíduos investirem não apenas em capital físico, mas também em inovações e na acumulação de capital humano, em todas as áreas da economia, mas principalmente nas áreas que mais dinamizem as atividades estruturantes de oportunidades de geração de trabalho e renda;
Demografia - A população futura será composta por uma parcela expressiva de idosos, que se distribuem por todo território da metrópole e se constituirão proporcionalmente em uma parcela maior que a população jovem. A população em idade economicamente ativa continuará a diminuir. A população total de Salvador também continuará a diminuir, com a possibilidade de um pequeno crescimento dos subcentros metropolitanos próximos, localizados nos municípios do núcleo metropolitano (Lauro de Freitas, Simões Filho e Camaçari) mais integrados à Salvador, provocada pelo aumento da migração intrametropolitana partindo de Salvador, motivada pela violência urbana, pela consolidação do teletrabalho, pelas dificuldades de mobilidade, dentre outras causas. Salvador continuará a ser um centro urbano que atrai migrantes do interior do estado da Bahia, em busca de oportunidades de trabalho, educação e saúde. Esse poder de atração deve ser considerado para pensar as periferias da metrópole, que tendem à densificação maior;
Educação - A educação será caracterizada por: aumento da escolaridade média, mas em patamares baixos (ensino fundamental); crescimento lento de pessoas com ensino médio concluído; distribuição geográfica das unidades escolares com pouca equidade quanto à distribuição da população no território; escolas públicas atendendo predominantemente a população de baixa renda, com a distância entre o ensino privado e o público ampliada pelo impacto da pandemia de Covid-19, que tornou mandatório o uso de tecnologias de informação para inúmeras atividades escolares; aumento das diferenças de qualidade na educação pública em relação à educação privada;
Trabalho - teremos um aumento da precarização do trabalho assalariado; aumento dos processos de “uberização” que se caracterizará pela contratação de serviços por demanda intermediadas por plataformas digitais; ampliação do teletrabalho em todas as ocupações que podem ser exercidas de casa – ocupações de escritório, serviços especializados vinculados direta ou indiretamente à economia digital; elevação da desigualdade de rendimentos entre os ocupados, com concentração maior de rendimentos em categorias ocupacionais mais qualificadas; redução da presença do Estado como mediador das relações de trabalho; aumento da automação das tarefas repetitivas com o desaparecimento de ocupações, impulsionada por tecnologias como Inteligência Artificial que vão ter impacto para desestabilizar processos tradicionais; importação de serviços prestados por trabalhadores mais qualificados domiciliados fora de Salvador;
Segurança pública e violência - consideramos que prosseguirão políticas de segurança reativas e de repressão; teremos um acirramento dos conflitos urbanos e da violência; desvalorização das ações preventivas e educativas na redução das violências urbanas; continuará a falta de integração das políticas de segurança pública com políticas sociais estruturantes; consolidação de guetos urbanos dominados pelo crime organizado (narcotráfico e milícias), interferindo nas políticas territoriais oficiais, com a infiltração de agentes do crime organizado nos dispositivos estatais de administração pública e de governança urbana;
Saúde - Indicadores ruins de saúde permanecem como grande sintoma da precariedade das condições sociais. Recuperação lenta do Sistema Único de Saúde como consequência das ações das administrações públicas – estaduais e municipais – pós-pandemia; aumento da pressão social pela regulação pública do sistema de saúde; necessidade crescente de atuação da gestão pública para a garantia da saúde coletiva, sobretudo em áreas densamente populosas da metrópole;
Tecnologias Digitais - Teremos uma ampliação constante e contínua do peso das tecnologias digitais em quase todos os processos produtivos, tornando premente uma coordenação e regulação estatal para diminuir a desigualdade de acesso a serviços e infraestrutura digital predominante ofertadas por agentes privados com distribuição espacial de acordo com critérios mercadológicos. Ampliação da conectividade digital nas relações sociais, de trabalho e de educação. Entretenimento e Cultura se configuram como oportunidade de negócios e de geração de trabalho e renda. A transformação de dados em commodities se consolida e tornará necessário investimento em pesquisas e formulação de políticas de dados e informações que tornem a metrópole menos dependente de dados produzidos de forma centralizada pelas instâncias estatais, federais e estaduais, para que a administração local possa se apropriar de dados produzidos localmente, por sensores, processos administrativos, pesquisas, cadastros, e tenha retratos mais exatos das características da população, do ambiente, dos processos de expansão, das dinâmicas socioeconômicas, dentre outros aspectos;
Ambiente - persistem os processos de perda da cobertura vegetal na metrópole e do aumento da pressão sobre os recursos hídricos. Ações de mitigação para as mudanças climáticas resultam inócuas, face à desarticulação intergovernamental entre os entes da federação. Os riscos socioambientais aumentarão com eventos meteorológicos extremos mais frequentes. Persistem conflitos no uso e ocupação do solo, entre ocupação residencial e preservação ambiental;
Expansão Urbana e Metropolitana - Serão necessárias políticas que estimulem o uso e ocupação dos vazios urbanos construídos, mas estas contribuem para uma modesta requalificação do espaço construído. Persiste a tendência de fragmentação social e espacial induzida pela expansão espacial que se dará por um crescimento horizontal na forma de urbanização dispersa de baixa densidade, com crescente ocupação do espaço nas franjas da metrópole por enclaves monofuncionais e socialmente homogêneos – conjuntos habitacionais; ocupações autourbanizadas e autoconstruídas; condomínios fechados horizontais; loteamentos exclusivos para alta e/ou média renda. Os novos enclaves serão produzidos pelo Mercado, na forma de loteamentos exclusivos de alto padrão ou de condomínios horizontais fechados, por programas habitacionais promovidos pelo Estado, e por assentamentos precários autourbanizados e formados por habitações autoconstruídas. Os dois primeiros com uso do solo pouco diversificado e uso residencial quase exclusivo. Em paralelo as áreas centrais da metrópole experimentarão forte pressão dos agentes do mercado imobiliário pela liberação sem restrições de expansão vertical cada vez mais intensa, incentivados pela escassez de solo urbano livre nas áreas centrais e em processos baseados principalmente na substituição de edificações aumentando a proporção de área construída em relação à área de terreno, sem gestão efetiva do poder público;
Mobilidade - será caracterizada por uma rede de alta capacidade incompleta e não totalmente integrada, impactada pela dificuldade de financiamento, com os modais de baixa e média capacidade atingidos pelo aumento da insegurança. Essas condições incentivam a busca por soluções de mercado que possam diminuir o tempo de viagem e resultam num gradual abandono da rede de transporte coletivo e do aumento do uso de recursos individuais – automóveis, motocicletas, aplicativos de transporte e entrega por demanda – potencializado pelos hábitos e necessidades criados ou incrementados pela pandemia de Covid-19 (teletrabalho, delivery, uberização). Teremos um aumento dos congestionamentos de tráfego causados pelo esgotamento das soluções convencionais adotadas nas últimas décadas (ampliação de vias, construção de túneis, viadutos e estacionamentos) que incentivaram o aumento da frota. Novos projetos viários ampliarão o tráfego de passagem na metrópole. Teremos aumento das viagens intrametropolitanas originadas dos municípios do entorno que aumentaram sua população e sua frota de veículos, como resultado do abandono do núcleo da metrópole.
Para concluir
As tendências que esboçamos são hipóteses de um futuro que se aproxima e são interrelacionadas. Por exemplo, uma urbanização dispersa e de baixa densidade, na forma de “enclaves residenciais” amplia a segregação socioespacial, o consumo de solo, a degradação ambiental, o custo de implantar e manter redes de infraestruturas técnicas e as dificuldades de operação e financiamento dos sistemas de mobilidade coletiva urbana e metropolitana. Políticas habitacionais que induzem à periferização e expansão horizontal das cidades, como o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), têm impactos consideráveis no meio ambiente, na mobilidade, na estruturação espacial das metrópoles e têm potencial para agravar desigualdades socioespaciais existentes. Do mesmo modo, políticas de transporte baseadas no incentivo ao transporte individual, como construção e duplicação de vias e viadutos, frequentemente levam a deseconomias, aumento do tempo de viagens e das distâncias percorridas cotidianamente em percursos casa-trabalho e reforçam a segregação socioespacial.
A perspectiva das metrópoles enquanto sistemas adaptativos complexos de interação de pessoas e organizações sociais distribuídas em espaços densamente construídos, servidos por infraestruturas e administrados por organizações políticas e sociais, pode ser uma forma de abordar as questões urbanas e metropolitanas de maneira mais holística e eficaz. As estratégias de planejamento urbano multidimensionais e transdisciplinares, com a utilização de tecnologias da informação e de comunicação, nos parecem as mais adequadas para pensar o futuro das metrópoles.
Parece óbvio afirmar que dinâmicas política, econômica, demográfica, social e ambiental são e sempre foram complexas, exigem um entendimento histórico e de contexto, o que torna o pensamento dual tradicional insuficiente para lidar com elas. As políticas públicas que podem responder à crise multissetorial em que estamos imersos devem também ser multissetoriais. Essa necessidade de tratamento integrado das questões urbanas e metropolitanas torna mais difícil a adoção de políticas adequadas e articuladas, pela configuração habitual de governos baseados em coalizões políticas e corporativas com interesses específicos, localistas e por vezes contraditórios, que tem dominado a administração pública nas últimas décadas.
O papel do Estado e da comunidade no provimento e na gestão dos bens comuns deve ser valorizado na construção de ações coletivamente construídas e que levem em conta a complexidade das metrópoles, suas estruturas e especificidades. Este espaço, nos artigos anteriores, tratou de temas que estão estruturando nosso futuro de forma quase irreversível, mas ainda é tempo para uma virada epistemológica, cultural e ideológica na direção de um novo senso comum, que permita o enfrentamento das carências que são parte integrante da nossa metrópole há muito tempo e das novas crises que o século XXI tornou corriqueiras.
Edição: Gabriela Amorim