Qual o futuro de metrópoles periféricas como Salvador nas próxima décadas?
Por Gilberto Corso Pereira, professor Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA e coordenador do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles
No ano em que teremos eleições municipais, a grande interrogação que podemos fazer é sobre o futuro da cidade. Qual o futuro (possível, provável ou plausível) de metrópoles periféricas como Salvador nas próximas décadas do século XXI? O ponto de partida para responder a essa questão é conhecer o estado atual da metrópole, que carregou do passado, pela sua evolução histórica, um conjunto de legados e passivos em diversas áreas – sociais, ambientais, econômicas, de acessibilidade e mobilidade, de governança urbana e metropolitana.
A Salvador metrópole foi objeto de diversos estudos e publicações do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles (dentre outros, ver: Como anda Salvador e sua região metropolitana, Salvador: transformações na ordem urbana, Salvador no século XXI: transformações demográficas, sociais, urbanas e metropolitanas - cenários e desafios, Cenários e tendências na metrópole pós-pandemia). Estes estudos, base deste e de outros textos neste livro, revelam que a metrópole de hoje, já antes da irrupção da pandemia de Covid-19 em 2020, legava para o futuro de seus habitantes questões e problemas como:
i) segregação socioespacial e desigualdade social;
ii) altos custos sociais relacionados com o acesso cotidiano ao trabalho, consumo e estudo pelas dificuldades de circulação que acontecem em uma metrópole com uma estrutura territorial ao mesmo tempo concentrada, dispersa e sem uma rede adequada de transporte coletivo;
iii) qualidade e distribuição espacial da moradia e infraestrutura urbana – redes técnicas, equipamentos, serviços urbanos – que refletem os processos de fragmentação socioespacial em curso;
iv) degradação do ambiente natural e construído.
A metrópole do século XX
Na Salvador colonial, o Recôncavo, a região em torno da Baía de Todos os Santos, desempenhou um papel de relevo na vida econômica da cidade que, desde cedo apresentava uma ocupação densa nas cumeadas próximas à Baía de Todos os Santos. Entre os anos 1940 e 1950, a cidade experimentou um crescimento demográfico causado, em grande medida, pelas migrações e, nesse período, a estrutura espacial de Salvador se modificou em função de vários fatores, como a reestruturação do centro da cidade, que ia tendo suas funções, que até então eram predominantemente residenciais, substituídas. A população de alta renda, que até os anos 40 ali se concentrou, passou a ocupar outros espaços. A população de baixa renda ocupou as velhas edificações e fez crescer a demanda por novas áreas residenciais, forçando a expansão da periferia urbana, então representada pelos fundos de vale não drenados e por outras áreas ainda não urbanizadas, particularmente nas encostas.
A expansão e modernização urbana se iniciou em uma região urbana pobre e incipiente, caracterizada por uma cidade praticamente estagnada ao longo de décadas. A transformação se deu de forma rápida e abrupta, entre as décadas de 1960 e 1970, com a realização de grandes obras que acompanharam e anteciparam os vetores da expansão urbana e uma intensa ocupação informal de famílias de baixa renda nas periferias. A abertura das avenidas de vale extirpou do tecido urbano mais valorizado assentamentos populares, que ocupavam os fundos, até então inacessíveis, dos numerosos vales de Salvador. Na década de 1980, consolidou-se um novo centro urbano, impulsionado por grandes empreendimentos públicos e privados realizados na década anterior.
Chegamos ao final do século XX com uma cidade que pode ser descrita pelo cenário apresentado em publicação de 1996 da Prefeitura de Salvador (PMS), no governo (1993 a 1997) da prefeita Lídice da Mata, da então terceira cidade do país em população (2,2 milhões de habitantes, pelo censo demográfico de 1991). O cenário destacou as seguintes características:
“i) altas taxas de crescimento demográfico, com acentuada desigualdade social;
ii) subnutrição infantil e doenças endêmicas;
iii) desequilíbrio espacial de padrões de urbanização e ocupação do solo;
iv) habitações populares irregularmente edificadas … ou em áreas de alto risco;
v) degradação física dos espaços públicos;
vi) agressões ao meio ambiente agravadas pelas reduzidas inversões em saneamento básico;
v) limpeza urbana deficiente;
vi) sistema de transporte coletivo sobrecarregado…”
O que surpreende é que o cenário descrito na publicação dos anos 1990 poderia descrever perfeitamente a metrópole contemporânea, com a exceção de parte da primeira frase, que menciona um alto crescimento demográfico, pois o censo de 2022 mostrou uma inversão desta curva, e Salvador, hoje a quinta cidade do país, passou por um processo de decrescimento.
Parafraseando o sociólogo e urbanista Richard Sennet, a cidade em que desejamos viver deve ser limpa e segura, dotada de serviços públicos eficientes, infraestrutura adequada, apoiada por uma economia dinâmica, prover estímulos culturais aos cidadãos e superar as divisões da sociedade em cor, classes e crenças. Essa não era a cidade do final do século passado, não é a cidade em que vivemos hoje, nem parece ser a metrópole futura.
O reconhecimento dos problemas do presente e seu enfrentamento por meio de políticas públicas poderia mitigar ou mesmo resolver uma evolução prevista com base em tendências reconhecidas. Não foi o que aconteceu com Salvador, cujo legado para as primeiras décadas do século XXI foi: intensa segmentação social e espacial; graves problemas de mobilidade; políticas habitacionais e de transporte que aprofundam a segregação socioespacial e impulsionam a dispersão urbana; problemas ambientais que se agravam pela falta de ordenamento territorial metropolitano; e ausência de políticas públicas adequadas e coordenadas por meio das quais sejam enfrentados os problemas urbanos e metropolitanos em sua complexidade.
Novas questões surgiram – emergência climática, aquecimento global, digitalização dos espaços e das relações sociais – e as velhas, reconhecidas já na década final do século XX, como aponta o cenário descrito pela publicação da PMS de 1996 mencionada, permaneceram na agenda pública como problemas não resolvidos – pobreza, vulnerabilidade socioambiental, mobilidade, moradia.
A metrópole hoje
As cidades contemporâneas têm como atributos a complexidade e a diversidade. No caso de Salvador, que tem como um dos seus traços a desigualdade social e espacial, esses atributos ganham contornos próprios e se expressam em arranjos sociais, ambientais e econômicos que resultam das diversas experiências, vivências e projetos conflitantes ou convergentes. As estruturas urbanas não podem ser interpretadas como um efeito direto das transformações recentes, pois são uma herança histórica dos efeitos da economia e das relações em sociedade no longo prazo, cristalizados tanto nas estruturas materiais do espaço construído como nas formas sociais de valorização simbólica e de apropriação.
As cidades são sistemas dinâmicos e em constante evolução. Consideramos que a sustentabilidade urbana das metrópoles vai depender em grande medida da maneira como gerenciamos as complexas interações entre sociedade, desenvolvimento econômico, ocupação territorial, evolução demográfica e natureza, tanto hoje quanto no futuro.
Como mensurar e comparar questões de naturezas tão diferenciadas e complexas? Bases de dados quantitativas podem oferecer respostas parciais. O espaço urbano se tornou, pelos processos de digitalização em que vivemos, um espaço para o acúmulo e a sistematização de dados e informações que demandam um tratamento transdisciplinar na análise e transparência, na divulgação e disponibilização.
Indicadores podem revelar a diferenciação do espaço urbano nas suas dimensões sociodemográficas e ambientais, e permitir a formulação de planos e políticas mais ajustados às diferenças e carências encontradas, em diversas escalas espaciais. A análise dos indicadores alimenta a participação e o controle social dos resultados do plano e permite um tratamento técnico e político integrado das propostas de políticas públicas, além de, ao organizar o conhecimento sobre a cidade, legitimar decisões técnicas ou políticas e explicitar a aderência (ou não) resultados das políticas às metas adotadas pelos processos de planejamento.
Os indicadores podem também ser usados para outros fins, como é o caso da divulgação recente da “liderança” de Salvador como “cidade inteligente e sustentável”. De que cidade estamos falando? Ou qual o conceito de “inteligência” que se aplica aqui? A ideia de “cidades inteligentes” da era digital, com uso de tecnologia para controlar de maneira mais eficiente a vida urbana e construir cidades planejadas, parece inadequada, ou mesmo fora de lugar, numa metrópole como Salvador com as características da cidade hoje. Não que a tecnologia seja irrelevante para a gestão da cidade, ou mesmo o uso de dados e indicadores, ao contrário.
As mudanças tecnológicas atuais afetam os mais diversos aspectos da vida cotidiana. A partir dessa constatação, devemos entender estas transformações não como uma macrotendência dimensional que influencia eventos futuros, mas como meta-tendências, no sentido que permeiam quase todos os aspectos da vida contemporânea e certamente serão cada vez mais presentes nas próximas décadas. É importante entender que se as tecnologias digitais não serão tudo que devemos considerar como relevante para o futuro, por outro lado, têm impacto em quase tudo, tornando indispensável desenvolver estratégias para garantir a inserção da metrópole e lidar com os impactos socioeconômicos inevitáveis que resultarão das inovações digitais, incluindo infraestrutura, educação, cultura, serviços e capacitação técnica.
Na situação atual não existe na metrópole uma gestão institucional das redes digitais de alta velocidade que são coordenadas por comitês gestores próprios, por departamentos ou empresas. As redes públicas são conhecidas e mapeadas, mas as redes privadas não são conhecidas na sua extensão e capacidade já que inexiste órgão regulador nas esferas municipais e estaduais. A decisão de expansão das redes privadas e a escolha de atendimento obedecem a critérios mercadológicos próprios de cada operadora. Assim, no que diz respeito à infraestrutura digital, somos dependentes principalmente de ações de agentes privados, dado que não existe regulação efetiva das redes de alta velocidade privadas, e as redes públicas são voltadas ao uso institucional e administrativo, portanto não acessíveis à maioria dos cidadãos. Já as redes móveis embora tenham uma cobertura razoável têm áreas de sombra por não serem atrativas para as operadoras.
Se o papel de prover oferta e regulação da infraestrutura digital for deixado para o Mercado, estaremos aprofundando a desigualdade legada pela metrópole do século XX para a metrópole do século XXI. Os impactos das mudanças tecnológicas não serão iguais em todos os lugares, e a metrópole deveria se preparar para as mudanças, com destaque para alguns pontos:
i) os níveis de instrução da força de trabalho da metrópole pressupõem um freio nas possibilidades de adoção de novas tecnologias;
ii) o baixo custo da mão de obra resulta que para muitas empresas ou projetos será pouco atrativo substituir esta mão de obra por inovação tecnológica;
iii) do mesmo modo, resulta pouco atrativo para a empresa investir na qualificação da força de trabalho, pois é mais simples importar os serviços (ou trabalhadores) de outros centros.
É nesse contexto que a construção de indicadores, baseados em dados e estatísticas públicas têm um papel central na elaboração de diagnósticos e em processos de gestão democrática e monitoramento do espaço urbano.
Os dados que o IBGE apresenta sobre Salvador apontam para uma cidade em 2022 com 2,4 milhões de habitantes. Relativamente à população, a cidade é hoje a quinta maior do Brasil, mas quanto ao rendimento (salário médio mensal dos trabalhadores formais) o município é o 96º. E relativamente à educação (taxa de escolarização de 6 a 14 anos de idade), comparado a outros municípios do país, Salvador é o 4.637º (dados de 2010). Relativamente à saúde (mortalidade infantil - 17,15 óbitos por mil nascidos vivos) Salvador é o 1.535º município do país. Foi palco do primeiro caso de cólera em quase 20 anos no Brasil. Quanto à população exposta ao risco ambiental, Salvador é a primeira do país com 1,2 milhões de pessoas expostas a algum grau de risco (dados de 2010). A cidade vive, em paralelo, nas áreas de baixo ou nenhum risco, um processo de liquidação das áreas verdes remanescentes.
Dados de segurança pública (Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2023) colocam Salvador como a 12ª mais violenta do país, ranking que coloca Simões Filho e Camaçari, municípios metropolitanos bastante integrados a Salvador, em 3º e 4º lugar.
É preciso pensar no planejamento e na gestão territorial em escala metropolitana e regional, de forma integrada com a mobilidade urbana além do território municipal, afinal, existem fluxos e relações entre Salvador metrópole e municípios vizinhos como Lauro de Freitas, Simões Filho, Camaçari e demais municípios que fazem parte da RMS e outros que estão fora dela, mas que estão na área de abrangência da metrópole e têm interações com ela.
A gestão metropolitana é caracterizada por uma sucessão de conflitos entre governos estaduais e municipais, em torno da implantação de grandes projetos, particularmente de infraestrutura viária, desarticulados de um planejamento territorial que considere os problemas metropolitanos e regionais. Os problemas ambientais, de mobilidade, segurança se agravam.
Para ser “inteligente” a cidade ainda tem um longo caminho a percorrer. Para ser “sustentável” também. Considerando o passado e o presente que os dados recentes e as tendências atuais nos apontam, precisamos pensar perspectivas e possibilidades de superar os desafios que se apresentam. No próximo artigo de opinião, vamos exercitar pensar uma Salvador metrópole menos desigual e mais inclusiva, como um futuro possível.
Edição: Gabriela Amorim