Às vezes dói existir e ficamos em busca de paliativos que não curam e podem sangrar ainda mais
Parece que todo texto exige de nós um estado de espírito para ser escrito. Passei dias para escrever este texto. Eu tinha uma ideia de como começaria o mês de agosto, mas as coisas foram mudando sem que eu me desse conta. Eu sentia que era preciso caminhar devagar, era preciso recolhimento, fazer silêncio dentro para ouvir o que precisava sair pelos dedos, pela escrita. Era preciso respeitar o processo. Entendi que o momento ainda é de cuidado. Cuidado de si, de quem está ao redor, de quem precisa de colo. Cuidado daquilo que sustenta a gente fisicamente, psicologicamente, espiritualmente. Agosto é o mês de Obaluaê, Omulu, Xapanã ou Sapatá. O nome pode variar de nação para nação no candomblé, mas a força é a mesma que rege as doenças e a cura delas. Atotô! Silêncio.
Assim como há momentos em que precisamos falar, há momentos em que precisamos fazer silêncio e ambos são remédios para nós. Eu reli algumas vezes um trecho de um itã de Sapatá do livro Mitologia dos Orixás de Reginaldo Prandi, que destaco abaixo:
... Omulu e seu cachorro retiraram-se no mato e foram viver com as cobras. Omulu comia o que a mata dava: frutas, folhas, raízes. Mas os espinhos da floresta feriam o menino. As picadas de mosquito cobriam-lhe o corpo. Omulu ficou coberto de chagas. Só o cachorro confortava Omulu, lambendo-lhe as feridas. Um dia, quando dormia, Omulu escutou uma voz: “Estás pronto. Levanta e vai cuidar do povo”.
Esta passagem pipocou tantas coisas e o que mais chamou a atenção é algo com o qual me deparo todos os dias com a escuta que faço das pessoas no meu trabalho, mas também a escuta que faço de mim quando estou com a minha analista. Um ritual de recolhimento para cuidar das chagas não vistas, nem por isto menos sentidas. Às vezes dói existir e ficamos em busca de paliativos que não curam e podem sangrar e inflamar ainda mais. Doentes de nós mesmos, perdemos o sentido de direção, rodamos nos labirintos de nossos pensamentos sem encontrar saídas.
Por sermos em muitos momentos tão influenciáveis pelos outros sem nos darmos conta, de tantas vozes que escutamos fora e dentro de nós, é possível reconhecermos a nossa própria voz? aquela que é sentida não só pelos ouvidos, mas pelo coração, pelas vísceras, no arrepio da pele? As nossas células estimulam umas às outras, elas trabalham muito para que a gente seja, viva. E num mundo hiperestimulante e barulhento, em vários aspectos, me parece que elas acabam trabalhando muito mais para processar tantas informações e estímulos. Só de imaginar a atividade celular nestes tempos, eu fico exausta. Não esqueçamos que é o crescimento desordenado das células que resultam num câncer. O que acontece psiquicamente pode acontecer fisicamente, organicamente, porque estamos imprimindo uma dinâmica a ser aprendida pelo corpo, e o corpo tem muitas memórias.
Não é tão difícil concluir que estamos vivendo ritmos, relações, conexões e produções anti-naturais. Parece que não temos tempo nem espaço para sabermos quem temos sido, para escutarmos o que de fato nos atordoa, o que sentimos, onde é que dói, quais são nossos remédios. Nos prendemos à primeira receita e conclusão que nos oferecem como quem aceita um doce.
Como Sapatá no itã, às vezes a gente precisa entrar numa mata. Retirar-se, comer o que a mata dá, aprender a lidar com os espinhos que ferem, com as picadas de mosquito que cobrem o corpo, conhecer as nossas chagas, lamber as nossas feridas, até que estejamos prontos para cuidar do que precisa de cuidado, de quem precisa de cuidado. Só quem passa pelos próprios infernos é capaz de entender os infernos alheios com todo respeito e silêncio.
Que Sakpatá nos dê coragem de olhar para as nossas chagas e sarar as nossas feridas porque algumas delas ainda inflamam e sangram. Que a gente não precise ferir ninguém para lidar com as nossas dores, pelo contrário, que saibamos pedir ajuda e encontrar os remédios de nossa alma.
Edição: Gabriela Amorim