Os brasileiros estão por décadas expostos a um modo de vida baseado em consumo
O texto dessa semana bem que poderia ser em formato de crônica, mas aí eu vi uma notícia que me alertou: a melhor crônica é a vida alheia. Assim sendo, pouco importam os gêneros literários na era dos reality shows. Para nós, essa era começou um tanto tímida com a vontade alucinada de acompanhar todas as noites o romance de Supla e Bárbara Paz, na Casa dos Artistas. Com o passar dos anos o anseio pelas novelas da vida real só aumentou. Foda-se Carminha, interessante mesmo é Karol Conka. O espetáculo quase sempre foi esse, sem dublador e com personagens brasileiros de carne e osso. Até o brasileiro descobrir um fenômeno gringo chamado Quilos Mortais. Assistir estadunidenses com obesidade mórbida viralizou tanto que, pelas bandas cá, teremos uma edição do programa para chamar de nossa.
Observar pessoas doentes, em uma sociedade doente faz emergir uma experiência um tanto quanto interessante: Nosso interesse por nós mesmos, pelo que tememos ser e pelo que gostaríamos de não ser. “Ufa, ainda bem que não é comigo”. “Ainda bem que tem gente mais gorda do que eu”. “Nos EUA tem tanta gente obesa, aqui no Brasil não estamos assim”. Pior que estamos. Segundo dados do Ministério da Saúde, 1 em cada 3 brasileiros são obesos. O aumento de peso dos brasileiros foi tanto que agora Dr. Now ganhará uma versão brasileira. Um olhar ingênuo para esse fato não compreende que a obesidade espetacularizada em Quilos Mortais Brasil aponta para o sucesso da importação do estilo de consumo norte americano (american way of life).
Os brasileiros estão por décadas expostos a um modo de vida baseado em consumo. A partir a reestruturação econômica pós Segunda Guerra, a filmografia e cultura televisiva se mostraram fundamentais para despertar em países com potencial consumidor a ilusão de pertencer à casa do Tio Sam. A comida, dentre tantas outras coisas, traz essa sensação de pertencimento. A presença, permanência e expansão dos hábitos alimentares norte americanos modificou a nossa relação com a nossa comida e vem moldando os nossos corpos. Hambúrguer, batata frita, frango frito, sorvetes, salgadinhos, refrigerantes, corn flakes, brownie, nuggets, hot dog, red velvet, cheesecake, doces ultraprocessados e muitas outras coisas que eu tenho certeza de que alguma delas está na sua dispensa. E está aí a prova de um big success.
A sociedade brasileira apreendeu a parte simbólica dos mecanismos de disseminação da cultura estadunidense. Muitas pessoas ainda acreditam que produtos que vêm dos EUA são sinônimos de qualidade, confiabilidade e status. “Have a break have a Kit Kat”. Se comer um nuggets no passado era um máximo, não tem problema comer uns nuggets no presente. De tanto confiar, viramos um país que boa parte da sua população come desenfreadamente american food, ou junk food para amenizar o termo. O resultado disso é visto na balança e nos consultórios médicos. O poder de influência sutil (soft power) está evidente, mas, como bons brasileiros que somos, fingimos não ver. Sobretudo quando a obesidade toma conta das camadas mais vulneráveis. Que são exatamente as que aparecem na chamada de estreia de Quilos Mortais Brasil.
É tão bom assistir os shows de tragédia – do outro. Of course.
Edição: Gabriela Amorim