Coluna

A conquista, a guerra, a fome e a morte te atingem diretamente no coração

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Heba Zagout (1984–2023), Gaza Peace [Paz de Gaza], 2021. - Tricontinental
Promessa de Biden de construir um 'cais temporário' para permitir a entrada de ajuda em Gaza é vazia

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Em 4 de Março, o Comissário-Geral da Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras à Palestina (UNRWA), Philippe Lazzarini, apresentou um relatório alarmante sobre a situação em Gaza (Palestina) à Assembleia Geral da ONU. Em apenas 150 dias, disse Lazzarini, as forças israelitas mataram mais de 30 mil palestinos, quase metade dos quais crianças. Aqueles que sobrevivem continuam enfrentando os ataques de Israel e são afligidos pelos traumas da guerra. Os quatro cavaleiros do apocalipse descritos no Livro do Apocalipse da Bíblia – Conquista, Guerra, Fome e Morte – estão agora galopando de uma ponta a outra de Gaza.

“A fome está em toda parte”, disse Lazzarini. “Uma penúria provocada pelo homem é iminente”. Poucos dias depois de Lazzarini ter feito a sua avaliação contundente, o Ministério da Saúde de Gaza informou que os níveis de desnutrição infantil na parte norte da faixa são “particularmente extremos”. O Coordenador Humanitário da ONU para a Palestina, Jamie McGoldrick, disse que “a fome atingiu níveis catastróficos” e “as crianças estão morrendo de fome”. No final da primeira semana de março, pelo menos 20 crianças tinham morrido devido à fome. Entre eles estava Yazan al-Kafarna, de 10 anos, de Beit Hanoun (norte de Gaza), que morreu em Rafah (sul de Gaza) no mesmo dia em que Lazzarini discursou na ONU. A imagem do corpo emaciado de Yazan rasgou a consciência já abalada do nosso mundo. Uma sucessão de histórias horríveis se acumula ao lado dos escombros produzidos pelos bombardeios israelenses. O médico Mohammed Salha, do hospital Al-Awda, onde Yazan morreu, diz que muitas mulheres grávidas que sofrem de desnutrição deram à luz fetos natimortos ou precisaram de cesarianas para retirá-los – sem anestesia.


Mohammed Sami Qariqa (1999–2023), da exibição “Gaza International Airport”, 2022. / Tricontinental

Um cessar-fogo não está no horizonte. Nem existe qualquer compromisso real para levar ajuda a Gaza, especialmente no norte, onde a fome tem causado maiores danos (em 28 de Fevereiro, o Director Executivo Adjunto do Programa Alimentar Mundial da ONU, Carl Skau, disse ao Conselho de Segurança que há uma “perspectiva real de fome [no norte de Gaza] até maio, com mais de 500 mil pessoas em risco se a ameaça se concretizar”). Cerca de 155 caminhões de ajudaentram em Gaza por dia – muito abaixo da capacidade diária de 500 caminhões – e apenas alguns deles vão para o norte de Gaza. Os soldados israelenses têm sido implacáveis. No dia 29 de Fevereiro, quando caminhões de ajuda chegaram a Al-Nabulsi (no extremo sudoeste da Cidade de Gaza) e pessoas desesperadas correram para eles, as tropas israelitas abriram fogo e mataram pelo menos 118 civis desarmados. O episódio ficou conhecido como Massacre da Farinha. Os lançamentos aéreos de alimentos não são apenas inadequados em volume, mas também resultaram em mais sofrimento, com alguns pacotes caindo no Mar Mediterrâneo e outros atingindo fatalmente pelo menos cinco pessoas.

Como que do nada, o Presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou no seu discurso sobre o Estado da União, em 7 de Março, que o seu país construiria um “cais temporário” no sul de Gaza para facilitar a entrada de ajuda pelo mar. O contexto desta decisão, que Biden omitiu, é evidente: Israel não está permitindo que o mínimo necessário de ajuda humanitária passe pelas fronteiras terrestres, Israel destruiu o porto de Gaza em 10 de Outubro e pulverizou o aeroporto em Dahaniya em 2006. Tal decisão certamente não vem do nada. Também surge no meio da campanha para que os democratas nos EUA votem “descomprometidos” nas primárias em curso para deixar claro que a cumplicidade dos EUA no genocídio terá um impacto negativo no esforço de reeleição de Biden. Embora um pão seja melhor do que nenhum, estes pães chegarão a Gaza manchados de sangue.

Há um vazio no pronunciamento de Biden. Uma vez que a ajuda chegar a esse “cais temporário”, como será distribuída? As principais instituições em Gaza capazes de qualquer distribuição em grande escala são a UNRWA – agora sem financiamento pela maioria dos países ocidentais – e o governo palestino liderado pelo Hamas – que os países ocidentais se propuseram a destruir. Uma vez que nenhum dos dois será capaz de distribuir ajuda humanitária no terreno (e, como disse Biden, “não haverá tropas dos EUA no terreno”), o que será da ajuda?


Fathi Ghaben (1947–2024), Ray of Glory [Raio de Glória], n.d. / Tricontinental

A UNRWA tem trabalhado desde que a resolução 302 (IV) da ONU foi aprovada em 1949, desde então tem sido a principal organização fornecendo ajuda aos refugiados palestinos (dos quais havia 750 mil quando a UNRWA iniciou as suas operações e dos quais existem 5,9 milhões hoje). O mandato da UNRWA é preciso: deve garantir o bem-estar dos palestinos, mas não pode operar para instalá-los permanentemente fora das suas casas. Isso porque a resolução 194 da ONUconcede aos palestinos o “direito de retorno” às suas casas de onde foram expulsos pelo Estado israelense. Embora o principal trabalho da UNRWA tenha sido no domínio da educação (dois terços dos seus 30 mil funcionários trabalham nas escolas da UNRWA), é também a organização mais equipada para lidar com a distribuição de ajuda.

O Ocidente permitiu a criação da UNRWA não devido a qualquer preocupação particular com os palestinos, mas porque – como o Departamento de Estado dos EUA observou em 1949 – as “condições de agitação e desespero proporcionariam um terreno muito fértil para a implantação do comunismo”. É por isso que o Ocidente forneceu fundos para a UNRWA (embora, desde 1966, isto tenha sido acompanhado de severas restrições). No início de 2024, a maioria dos países ocidentais cortou o seu financiamento à UNRWA com base numa acusação infundada que ligava funcionários da UNRWA ao ataque de 7 de Outubro. Embora tenha sido recentemente revelado que o exército israelense torturou funcionários da UNRWA com afogamentos e espancamentos, e os forçou a fazer confissões, a maioria dos países que cortou o seu financiamento com base nesses motivos não conseguiram restabelecê-lo (com exceção do Canadá e da Suécia, que retomaram recentemente o seu financiamento). Entretanto, vários países do Sul Global – liderados pelo Brasil – aumentaram as suas contribuições.

Filippo Grandi, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados que dirigiu a UNRWA de 2010 a 2014, disse recentemente que se “a UNRWA não for autorizada a trabalhar, ou for privada do financiamento, dificilmente consigo ver quem a possa substituir”. Nenhum programa de ajuda humanitária aos palestinos em Gaza é possível a curto prazo sem a plena parceria da UNRWA. Qualquer outra coisa é uma farsa de relações públicas.


Majd Arandas (1994–2023), My Grandmother, 2022. / Tricontinental

Lendo sobre a fome em Gaza, lembrei-me de um poema escrito por Wisława Szymborska (1923–2012) sobre o campo de concentração de Szebnie em Jasło (sul da Polônia), que manteve judeus poloneses, ciganos e prisioneiros de guerra soviéticos de 1941 até o campo ser libertado pelo Exército Vermelho em setembro de 1944. Violência brutal e horrível foi infligida pelos nazistas em Szebnie, especialmente contra os milhares de judeus que foram mortos lá em execuções em massa. O poema de Szymborska, “Os campos de fome nos arredores de Jaslo” (1962), não recua diante da miséria que a cerca, nem da possibilidade de humanidade pela qual ela ansiava.

Escreva isto. Escreva. Com tinta comum.
No papel comum: não lhes deram de comer,
Todos morreram de fome. Todos. Quantos?
É um prado grande. Quanta grama para cada um? Escreva: não sei.
A história arredonda os esqueletos para zero.
O mil e um ainda é mil.
Aquele um é como se nunca tivesse existido:
Feto imaginado, berço vazio,
A cartilha aberta para ninguém,
O ar que ri, grita e cresce,
A escada para o vazio que corre para o jardim,
Lugar de ninguém na fileira.
E se fez carne, aqui, no prado em que estamos.

E ele silencia como a testemunha comprada.
Ao sol. Verde. Ali pertinho o bosque
Para mascar a madeira, sorver sob a cortiça
Uma porção da vista cotidiana,
Até que se fique cego. No alto, um pássaro,
Que passava pelas bocas sua sombra
De asas nutritivas. Abriam-se as mandíbulas,
Batia o dente no dente.

De noite no céu reluzia a foice e ceifava agosto para os pães sonhados.
Vinham voando as mãos dos ícones enegrecidos,
Com cálices vazios entre os dedos.
No espeto de arame farpado
Balançava um homem.
Cantavam com terra na boca. Uma canção linda
Sobre a guerra que atinge direto o coração.

Escreva: que silêncio aqui.
Sim.1

Tradução de Piotr Kilanowski, disponível em: https://revistaforum.com.br/colunistas/resenhalivre/2015/1/27/os-70-anos-da-libertao-de-auschwitz-um-poema-de-wislawa-szymborska-20135.html.NOTA DE RODAPÉ

 

As pinturas e fotografias desta carta semanal foram criadas por artistas palestinos mortos em Gaza durante o genocídio de Israel. Eles morreram, mas devemos viver para contar suas histórias.

Cordialmente,

Vijay.

* Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo