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Engolir choro, engolir palavras: por espaços em que se possa chorar e vomitar palavras

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Resistir às adversidades muitas vezes passa por reprimir as emoções, negar os próprios sentimentos e silenciar - freestockercenter
Fomos educades por nossos mais velhos e mais velhas a “engolir o choro”.

Sshhhh...! Vem aí Curundingooooo...!!!
Sshhhh... Cala a boca, agacha, baixa a cabeça, rápido...! Para que ele não lhe crave os olhos sombrios e você morra aí mesmo...!

Teresa Cárdenas


Andei conversando com a Teresa Cárdenas no meu imaginário e parte do que aqui está escrito é de minhas impressões sobre o seu livro Awon Baba misturadas às imagens que vão e voltam da criança palestina traumatizada que tremia diante das câmeras, mas também de como as crianças negras aprenderam a silenciar e precisaram inventar um corpo para traumas encarnados. Tiveram que aprender a serem fortes, a lidar com grandes frustrações como não conseguir estudar, ter que trabalhar quando se queria brincar, como não ter o que comer e onde dormir, ser presença indiferente para o pai que não assume a paternidade, ausência de toque, intimidações de todo tipo e a lidar com as violências impostas por causa de sua pele, ainda mais quando retinta. Tiveram que lidar com o Curundingo* internalizado.

Ouvindo pessoas diversas, em especial as negras, me deparo com algo que se repete em suas trajetórias: resistir às adversidades muitas vezes passa por reprimir as emoções, negar os próprios sentimentos e silenciar. Fomos educades por nossos mais velhos e mais velhas a “engolir o choro”. Sabemos que isso é resultado das formas de defesa que as pessoas negras encontravam para lidar com as agruras de brutalidades históricas e parece que transmitiram às suas sementes os modos de permanecerem existindo “apesar de”.

Como ainda era pequeno, não sabia o que tinham experimentado seus companheiros de Senzala. No entanto, toda aquela memória havia encontrado o caminho para chegar até ele... e aquelas palavras entraram em sua cabeça esvoaçando como vaga-lumes e ficaram lá. Brilhando, guardadas como um tesouro” (Teresa Cárdenas em Awon Baba). A tradição formata os resquícios da memória do trauma, aquelas marcas de uma fala, de uma imagem, de um movimento de corpo que faz morada em nós como fantasmas prontos a nos assombrar a qualquer tempo. É certo que nos transmitiram outras defesas que passam não só pela catártica alegria de fazer samba e tocar para os nossos deuses em rituais sagrados e profanos. Porém, não se pode ignorar os efeitos que o “engolir o choro” e “resistir apesar de” são capazes de fazer com um sujeito e sua história.

A criança que engolia o choro de outrora aprendeu a se tornar adulta que “engole palavras” e às vezes “sapo” para sobreviver, mas também encontra na violência extrema uma defesa, um modo de lidar com um oceano de significantes que lhe afogam, palavras abismais que produzem mal estar enigmático. E vai passando a vida asfixiada, sufocada pelas palavras que vão criando substâncias tóxicas subjetivamente e fisicamente, como uma espécie de intoxicação alimentar porque também nos alimentamos de palavras.

Silenciar foi uma técnica de tortura e imobilização de nossos corpos que deu muito certo, palavras foram criadas para que esquecêssemos quem somos. Uma palavra, um nome substituiu outro: “À força, tiveram que aceitar os nomes brancos, aquelas palavras raras que não conheciam e que despedaçavam o muito ou pouco do que se recordavam... Deixariam para trás seus belos, potentes e ancestrais nomes... deveriam sobreviver. No entanto, era tudo uma bagunça, um enredo dos infernos. Palavras demais para esquecer, emaranhadas com vocábulos desconhecidos de outros escravos, junto aos sons estranhos e ameaçadores dos brancos” (Teresa Cárdenas em Awon Baba).

O silêncio se entranhou na nossa educação, no modo de se relacionar, calamos para não nos comprometermos, calamos com medo de represálias, calamos diante do absurdo, calamos para esconder o que sentimos, calamos para não nos expormos. Mas, também calamos por recusa a entregar os nossos aos feitores, aos ditadores, aos torturadores. Falar poderia ser perigoso, mas não falar também era e é. Parece que aprendemos a calar para tudo, mas apesar do medo de abrir a boca, sempre houve e sempre haverá versões de nós que falarão de algum jeito: pelos sintomas neuróticos, pela boca, pela arte, pela música, pela dança, pela luta, pela escrita. Darão sempre um jeito de abrir as portas da casa grande alojadas em nossas gargantas e romper silêncios.

A nossa continuação passa pelas expressões do nosso corpo, da nossa oralidade, da capacidade que temos de viver as experiências com espontaneidade, mesmo com os medos que nos constituíram. Por isto mesmo, precisamos de espaços em que o choro seja possível, que as palavras sejam vomitadas e regurgitadas, circulem e desobstruam as veias e as vias que nos sufocam. As palavras desenham ações que nos conduzem ao poder fazer. Ao fazer nosso caminho e história pelo mundo.

* Termo retirado do livro Awon Baba de Teresa Cárdenas que designa capataz ou uma maneira de alerta para que os negros se mantivessem a salvo do perigo.

Edição: Gabriela Amorim