Bahia

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Remédios para sonhar...

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Ponte Dom Pedro II, sobre o Rio Paraguaçu, liga as cidades de Cachoeira e São Félix - SETUR-BA
As dores passavam na travessia do Rio Paraguaçu, no samba de roda sambado e suado na rua

Me consultei com uma médica homeopata, indígena. Ainda estou pensando neste momento... tudo parecia conhecido, mas não era.

Estávamos uma de frente para a outra, ancestralidades ligadas à terra, mas já afetadas pela “EUropeidade”. Não parecia consulta, foi uma conversa. Próxima demais para os padrões relação médico-paciente, distante o suficiente para algum parentesco. Eu achei que estava começando outra relação de análise.

Eu me narrei... em alguns momentos eu me incomodei de ter que lembrar do passado para aquela mulher, ainda há (nó)dulos nas palavras. Eu me vi caindo na posição de heroína só para doer menos, só para tirar alguma vantagem dos meus infernos. Eu sentia prazer em tirar vantagem dos meus infernos, mas isto não é analgésico, tampouco anti-inflamatório.

Uma parte de mim vibrava com o que estava acontecendo: Achei! Enfim, alguém para confiar os meus úteros. A outra questionava: ela quer saber mais de sua vida do que da sua biologia. Como vai cuidar de suas enfermidades? Eu disjuntei a vida da bio. Meu “superEU” heroíno ainda tem a força de um chicote nas costas.

A médica me receitou óleos e extratos de ervas. Remédios para sonhar. Sim, extratos de ervas e óleos para sonhar. As plantas conversam com nossos líquidos. Ela quer que lhe dê notícias dos meus sonhos, disse que neles também há informações para o meu tratamento. Os extratos vão conversar com meu líquor enquanto estiver sonhando.

Alertou que na homeopatia se extrai química de muitos serezinhos, incluindo o meu para a cura. Mas, não me parece que será do cérebro. Talvez, na minha imaginação, da medula espinhal para curar coisas espinhentas.

Saí de lá e a ficha só caiu depois. Uma outra medicina em curso como flecha-lança do passado que atravessa os tempos. Uma pajelança, uma pajelinamedilança.

Eu só sei que desde então tenho pensado em remédios para sonhar. Pensamentos visitantes que me fazem vaguear. E tudo isso porque comi um pãozinho delícia bem queijado no recheio, na estrada, em direção a São Félix para um lugar chamado Dendê. O leite da vaca e o azeite de dendê. Eu pensei na extração destas coisas na via da viagem. Sozinha olhando o horizonte e as paragens verdes com vaquinhas. Foi minha associação livre já que naquela hora do dia era para estar com a minha escutadora analista.

Eu senti que, sem ser heroína de nada, estou vencendo os meus medos. Viajar sozinha deixou de ser assombroso. Uma parte de mim é andarilha, andar ilha. É andança, dança dança dança... rodopia, piá! Outra parte é muita coisa que nem sei e nem nome tem ainda.

Eu sinto que estou descoagulando os meus sangues, os meus líquidos, estou desjuntando inflamações. Eu fui para Cachoeira FLICAR*, tomar banho de livros, gentes e poesia. Fui me juntar a pessoas, fui me enfiar no meio de um mato diferente, de plantas que viraram páginas, mas também de outras que continuam verdes, de pessoas-árvores.

O ar puro dos matos fazem muito bem mesmo. Eu me peguei conversando com meu sangue, com meu choro, meu suor e minhas lágrimas. Meus líquidos, minhas águas represadas, coaguladas. Retenções que pesam as minhas pernas e meus úteros e doem, doem quando ando.

Mas, eu andei lá.  E não andei só. As dores passavam na travessia do Rio Paraguaçu, no samba de roda sambado e suado na rua, na maniçoba bem comida de deixar o corpo mole, na cervejinha gelada em uma tarde quente, numa taba-tenda cheia de livros e pessoas se enfeitiçando mutuamente com conversas e risos, salivando e se deliciando com ideias de mentes encharcadas de saberes ancestrais, nos casarões coloridos e suculentos do céu azul de Cachoeira e São Félix. Havia muitos encantados e encantadas por lá. E eu sorvi essa experiência como um chá gostoso, um preparado feito por uma curandeira. Viajar é remédio para mim, estou reescrevendo minhas cartas de navegação, mudando minhas rotas, levantando a vela e aportando em outros mares-rios. As travessias também podem nos curar. Em Cachoeira, com os olhos e os poros abertos e pés no chão, eu sonhei.

* Referência à FLICA - Festa Literária Internacional de Cachoeira na Bahia.

Edição: Gabriela Amorim