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Uma lupa só detalha uma pequena parte do problema

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Nova rotulagem frontal passa a ser obrigatória também para produtos que já estão no mercado - Divulgação/Anvisa
A lupa não é tão direta e abre brechas para as peripécias mercadológicas da indústria alimentícia

No próximo mês, produtos que já estão em circulação nos mercados devem se adequar às novas regras de rotulagem no Brasil. Não sei se vocês já estão atentos para algumas lupas que aparecem na parte frontal das embalagens dos alimentos, principalmente dos ultraprocessados. O que chamamos de sistema de rotulagem frontal foi inaugurado pelo países latino-americanos. O Chile foi o pioneiro na adoção dos octógonos, na frente das embalagens, que alertam os consumidores sobre o excesso de açúcar, gordura e sódio dos alimentos.

O modelo do Brasil, país que Lima Barreto cirurgicamente chamou de “bovarrista”, foi criado pelo Canadá e, nele, não temos octógonos. Pensado como uma espécie de “caminho do meio” entre os alertas chilenos, a lupa não é tão direta e abre brechas para as peripécias mercadológicas da indústria alimentícia.

Sem negar a importância de evidenciar-se a quantidade total de açúcar, gordura, edulcorantes e sódio nos alimentos ultraprocessados, antes mascarado por uma tabela nutricional confusa e escorregadia. A questão que quero levantar aqui é: Não adianta oferecer a lupa como solução para aqueles que não sabem ver. Sim, saber é muito diferente do querer. Há aqueles que não querem ver e aqueles que não sabem ver. São esses últimos que me interessam.

No Brasil, para além do grande problema de insegurança alimentar e fome, temos o agravante da falta de educação. O problema educacional em nosso país é equiparável a uma metástase. Vivemos em um ciclo vicioso no qual fingimos que ensinamos para aqueles que fingem que aprendem. O resultado disso é uma dissonância. Em um formato de educação fadada ao fracasso, deixamos de entendê-la como ferramenta para o bem viver.

A ausência do poder público, em todos os alpendres da sociedade, ecoou em um predomínio do discurso da indústria, e nós não fomos educados para lidar com ele. Abrimos pacotes de salgadinhos, biscoitos, macarrões instantâneos e comemos quantidades absurdas de aditivos químicos, saborizantes, cosméticos [sim, você acha que só tem espessante no creme que você passa na sua pele?], açúcar, gordura e sódio. O saldo dessa facilidade de acesso a esses produtos vem em forma de diabetes, obesidade e do nosso afastamento, de adultos e crianças, com a natureza.

O que temos é uma cultura alimentar que relaciona comida infantil com junk food. Adulto que não come açúcar está cuidando da saúde, criança que não come açúcar está deixando de ser criança. Com essa narrativa fechamos os olhos para a necessidade de políticas públicas que eduquem e limitem o acesso aos ultraprocessados. Vamos colocar uma lupa na parte frontal do rótulo e todos os problemas acabarão. Indústria não perde dinheiro e a pessoa vai consumir somente porque quer consumir. Algo parecido com aquelas imagens de gente com gangrena e dente podre no verso das embalagens de cigarro só que sem a mesma ênfase e incômodo.

Não podemos pensar que o modo que estamos comendo não se tornou um problema de saúde pública. Um problema de saúde pública só se resolverá com um modelo de educação e políticas públicas. Não podemos ser ingênuos e achar que somente uma lupa na parte frontal das embalagens seria a resolução dos problemas causados pela busca dos lucros da indústria alimentícia. É preciso pensar em uma alimentação integralmente saudável, na qual pessoas de preferia não precisem caminhar mais de 1 km para comprar 1 kg de cenoura envenenada. Pautar uma alimentação integralmente saudável é promover ações benéficas para quem come, para quem vende, para quem planta e para o solo em que ela habita. 70% do que comemos vem da agricultura familiar, e a mesma detém, apenas, 30% das terras cultiváveis do Brasil. Em terra de cegos, quem tem uma lupa, jamais será rei.

Edição: Gabriela Amorim