Bahia

Violência policial

PM acusado de matar menina Geovanna Nogueira é absolvido em júri popular

Geovanna Nogueira, de apenas 11 anos, foi alvejada no portão de casa em 2018

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Geovanna tinha apenas 11 anos quando foi alvejada no portão de casa durante ação policial em Salvador - Revista Afirmativa

Na manhã da última segunda-feira (21), o Fórum Ruy Barbosa foi palco do julgamento do policial Nildson Jorge Sousa França, acusado de matar a menina Geovanna Nogueira, no bairro Jardim Santo Inácio, em Salvador (BA). O crime aconteceu no dia 24 de janeiro de 2018, quando a garota tinha apenas 11 anos e estava abrindo o portão da própria casa para receber o avô que chegava para visitá-la.

O policial foi a júri popular após ficar comprovado em inquérito que um dos projéteis encontrados no local do crime saiu da arma que ele utilizava no momento da ação policial. Segundo Nildson, ele e o policial Emerson Camilo Sales Pereira estavam realizando uma operação de inteligência, quando foram alvejados por um grupo com cerca de sete homens armados, e revidaram os tiros para se defender. De acordo com a versão dos policiais e a versão oficial da Polícia Militar divulgada na época, Geovanna foi atingida na troca de tiros.

A família de Geovanna, no entanto, afirma que não houve troca de tiros e que os únicos disparos foram realizados por Nildson. A menina foi alvejada por um tiro na cabeça e, apesar de ser socorrida, não resistiu ao ferimento.

O caso é acompanhado pelo projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, do Instituto Odara, que faz o acolhimento, assessoria jurídica e formação política para mães e familiares de vítimas do Estado desde 2015. As advogadas do projeto, Daiane Ribeiro e Lorena Pacheco, participaram do júri como assistentes de acusação do Ministério Público.

Júri

O júri começou com a escuta dos depoimentos das testemunhas de acusação, Maria Ângela de Jesus Nogueira e Francisco Carlos Nogueira, mãe e avô de Geovanna, que estavam presentes na casa no momento da morte da garota. Ambos recontaram o que aconteceu naquela manhã de janeiro de 2018 e responderam às perguntas do Ministério Público e da defesa do réu.

Ângela e Francisco relataram mais uma vez que não houve troca de tiros e que ouviram apenas os três disparos feitos pelo policial. Francisco relatou ainda que viu o momento em que sua neta foi atingida no rosto. A defesa não apresentou testemunhas.

Baseado no depoimento dos familiares e na falta de comprovação de que houve uma troca de tiros, a acusação pediu a condenação do réu por homicídio simples, alegando dolo eventual, que acontece quando se assume o risco de ferir ou matar uma outra pessoa. O Ministério Público e as assistentes de acusação pontuaram que, ao realizar uma operação e realizar disparos numa área movimentada em horário de pico – por volta das 7h da manhã –, os policiais tinham a consciência de que pessoas da localidade poderiam ser alvejadas. “Não podemos normalizar mortes dessa forma”, afirmou o promotor.

Lorena Pacheco, durante o momento de sustentação da acusação, falou aos jurados sobre os sonhos interrompidos de Geovanna, que tocava violino e estava prestes a iniciar sua formação musical na Neojibá. “A gente nunca vai saber o que ela seria, se seria violinista, se entraria na universidade… Geovanna foi morta”, disse.
A advogada apresentou ainda a contextualização do cenário de violência e letalidade policial ao qual as crianças negras estão expostas, em decorrência da chamada “guerra às drogas” em determinadas comunidades. Em sua fala, ela relembrou casos como do menino Joel e da menina Mirella, mortos por agentes da Polícia Militar da Bahia, em 2010 e 2017, respectivamente, dentro das suas próprias casas em bairros periféricos de Salvador. “As mortes das nossas crianças não podem ser um efeito colateral da ação da polícia. As crianças das comunidades precisam de oportunidade, mas primeiro a oportunidade de viver”, enfatizou.

Defesa

Durante sua argumentação no tribunal, o advogado de defesa Daniel Keller criticou a investigação realizada pela polícia civil no local do crime, a qual caracterizou como “feita de qualquer jeito”. Segundo Keller, “a investigação foi feita de forma rápida para dar uma resposta à imprensa e à sociedade”, de forma que acabou prejudicando o policial acusado.

O advogado criticou também o trabalho da perícia, que foi feita três horas após a menina ser vítima do disparo, sem que o local do crime fosse isolado ou preservado de alguma forma. “Não existe nenhuma prova de que o projétil que saiu da arma dele [o policial] atingiu a cabeça daquela menina”, disse, apontando ainda que, dentre os quatro projéteis que foram entregues por populares, dois não tiveram a origem comprovada. A partir dessa argumentação, foi pedida a absolvição do réu por falta de provas ou, em segundo caso, a condenação por homicídio culposo, cometido sem a intenção de matar.

Mas o ponto da argumentação da defesa que mais chamou a atenção e causou revolta em muitas pessoas presentes no tribunal, foi a afirmação de que os depoimentos de familiares de Geovanna eram falsos, formulados com o objetivo de apontar um culpado para a morte da garota. O advogado usou a expressão “depoimentos fictícios” para se referir às versões apresentadas por Ângela e Francisco e Valdete de Jesus – avó de Geovanna, que também estava em casa quando tudo aconteceu; ela chegou a prestar depoimento na delegacia, mas não depôs durante o júri.

A defesa tentou desacreditar Ângela, que estava na casa quando tudo aconteceu, questionando o porquê de a menina ter sido socorrida pelos policiais, ao invés da própria mãe. “Que mãe não iria dar socorro à própria filha?”, perguntou o advogado. Daiane Ribeiro entende a postura da defesa como uma forma de revitimização da família. “A família é novamente violentada no momento em que é exigido de uma mãe que ela saia de casa para ver a filha com um tiro no rosto. É esperar uma postura sobre-humana de uma mulher, uma mãe”, afirma a advogada.

Durante toda a sustentação da defesa, Keller voltou a insinuar que os familiares estariam mentindo sobre os acontecimentos que vitimaram Geovanna. Em alguns momentos, o advogado chegou a encenar a forma como a mãe e a avó da menina se colocaram, alterando a própria voz e utilizando um tom jocoso. Em certo momento, Ângela, incomodada, se retirou do plenário.

“Há que se ter limites no que diz respeito à condução da ética no respeito às testemunhas. É preciso ter tato ao se referir ao que foi dito por essas pessoas. Imagine o trauma de você ver sua filha morrer na frente de casa e ainda passar por isso durante o júri”, criticou a advogada Lorena Pacheco.

Responsabilização do Estado

Ao final das sustentações da acusação e da defesa, os jurados interpretaram que não há indícios de autoria para a condenação do réu. A decisão se deu, principalmente, baseada na argumentação da defesa sobre a perícia não ter conseguido comprovar que o projétil que atingiu Geovanna saiu da arma do policial. Nildson Jorge Sousa França foi absolvido.

A assessoria jurídica do projeto Minha Mãe Não Dorme acredita que a morte da menina – e de tantas outras crianças negras pelas mãos da polícia – e a impossibilidade da condenação do policial se dá pela incapacidade de o Estado, primeiro, proteger as vidas dessas crianças e, segundo, se responsabilizar e garantir alguma justiça por suas mortes.
“O Estado falha no momento em que atinge Geovanna e falha novamente quando não faz uma perícia que dê conta de reunir todas as provas”, avalia a advogada Daiane Ribeiro.

Embora exista a possibilidade de recorrer da decisão, as advogadas não acreditam que isso irá ocorrer, já que nada aponta para alguma irregularidade no processo do júri em si. “De toda forma, ainda vamos avaliar junto ao Ministério Público”, conclui Lorena.