Bahia

Coluna

Nego fugido: aparição e libertação

Imagem de perfil do Colunistaesd
Nego Fugido é um espetáculo a céu aberto com peregrinações em vários pontos de Acupe, comunidade quilombola, em Santo Amaro - Fafá Araújo/Secult-BA
Nego Fugido é uma encenação-irradiação de antepassados, chamados também de Eguns, em fuga

NEGO FUGIDO. Para quem não conhece este teatro de aparição, trata-se de um espetáculo a céu aberto com peregrinações em vários pontos de Acupe, em Santo Amaro, uma comunidade remanescente de Quilombo na Bahia. Uma encenação-irradiação de antepassados, chamados também de Eguns, em fuga e o momento derradeiro do encontro com o caçador, o confronto, a captura, o abate, a imolação dos resistentes e humilhação dos sobreviventes. Espetáculo que acontece do primeiro ao último domingo de julho, quando acontece enfim a prisão do Rei. E ao final de cada aparição é com samba de roda que o espetáculo acaba. Julho é um mês importante para a história da Bahia, culmina com as lutas pela nossa independência. Os movimentos de insurgência e libertação no Brasil nasceram aqui.

As cenas impactam demais, e vê-las se repetirem a cada parada provoca uma sensação de paralisia, vontade de chorar, vontade de matar, mesmo que queiramos interagir com o espetáculo, a carne é abatida por uma sensação estranha. É impossível ser a mesma depois do que se vê. Ou será de se reconhecer naquilo que se vê? Até que percebamos algo mais além de uma história teatralizada que também é nossa, nos perguntamos o que faz um quilombo hoje? Para onde vamos quando necessitamos de liberdade? Quem são e onde estão os caçadores e os Negos Fugidos? Não me parece apressado dizer que tudo isto está em nós, no teatro inconsciente da nossa psique.

Não me canso de lembrar que a Lélia Gonzáles já disse que o racismo é a nossa neurose cultural, mas me pergunto o que caracterizaria a neurose de pessoas negras nessa institucionalização da raça e do racismo, enquanto prática, discurso e modo de vida. Enquanto lei fundante de um pacto civilizatório. Ao assistir as aparições que se repetem, me parece que a nossa neurose se caracteriza como uma fuga para a liberdade e a nossa captura no trajeto da fuga, algo que APARECE em muitas de nossas relações. Do que fugimos e pelo que somos capturados depende da história de cada um, de cada uma. O sangue está na boca do capturador e do capturado que estão em nós, é preciso falar para estancar o sangue e não morrer de engasgos existenciais.

Mas, o que este lugar, Acupe, guarda de precioso para nós além do teatro de aparição marcante e dilacerador? A cena de danças, cânticos e movimentos epiléticos é a memória corporal de que vale o risco de morte para uma fuga para a liberdade. O que deve morrer e o que deve viver em nós? Haverá muitos momentos em que seremos capturados, em lugares diferentes, situações diferentes, relações diferentes, pensamentos e acontecimentos diversos. Mas, a vontade de liberdade deve permanecer. A pulsão de vida deve permanecer. Ninguém se liberta sozinho, sozinha, a vontade de comunidade deve permanecer. Amar e lutar pelas sementes, o que quer que sejam elas, devem permanecer.

O Nego Fugido é uma espécie de Axexê para um povo quase sempre impedido de chorar seus mortos, de celebrar seus ancestrais. É quando o tambor, que também é o coração, toca para dançarmos, cantarmos e comermos junto com quem já se foi. É Oiá com seu ventos nas palhas de bananeiras, no samba de roda e batidas do Run que faz APARECER os ancestrais, os eguns. É ela que promove este encontro para não deixar morrer as cantigas de liberdade. É um momento em que eles, os ancestrais e eguns, retornam ao Ayê para celebrar junto com quem aqui está a quebra das correntes. De quem ontem eram sementes, hoje são frutos e dão continuidade aos passos da fuga libertadora. “Nego já correu e prendeu o Rei” essa é a cantiga.

Há muitas ruas no pensamento para se percorrer sobre este fenômeno, porque o Nego Fugido APARECE com muitas formas e sentidos, que vão ganhando contornos quando esbarra nas minhas experiências, mas também nas histórias de vida que escuto diariamente. Espero continuar batendo as ideias no coro do papel como quem toca o tambor e faz música com o vivido. Porque estas são apenas algumas impressões das memórias de um tempo que sobrevivem em nossa cultura e dizem muito de nós, de quem temos sido e o que temos feito viver em nós. Enquanto termino de escrever este texto, sinto meu sangue circular como quem está em fuga e sim, já vejo os candeeiros que me levam ao meu quilombo. Confiando o Ori (cabeça), o Okan (coração) e os caminhos às forças ancestrais que nos sustentam. Há outras cantigas de como poderemos ser para serem escutadas, que sejamos capazes de encontrá-las em quem veio antes e fazê-las viver.

*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Gabriela Amorim