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Movimento Negro Unificado na Bahia elege Samira Soares sua nova coordenadora

Nesta entrevista, Samira fala sobre rumos do MNU, representatividade, bem viver e mais

Salvador |
Mulher mais jovem a assumir a coordenação do MNU Bahia, Samira Soares tem longo histórico de militância dentro e fora do movimento - Arquivo pessoal

Bacharel em Humanidades, mestre e doutoranda em Literatura pela Universidade Federal da Bahia e graduanda em Letras Vernáculas, Samira Soares é professora em formação e ativista e eleita a mais nova coordenadora do Movimento Negro Unificado (MNU) na Bahia. Ela produz formações e consultorias sobre relações raciais, gênero e questões LGBTQIA+, partindo do viés de representatividade dentro e fora do mundo corporativo. Nesta entrevista, a repórter Vânia Dias conversou com Samira sobre os rumos do MNU na Bahia, Julho das Pretas, projetos e outras iniciativas idealizadas por ela.

Brasil de Fato - Você vem de uma longa história de militância e de ativismo dentro e fora do Movimento Negro Unificado (MNU), organização completa, em 2023, 45 anos de atuação e de combate ao racismo. E você acaba de assumir a coordenação do MNU-Bahia. Como se sente sendo a pessoa mais jovem a assumir esse lugar de coordenação no estado e quais os projetos para a sua gestão?
Samira Soares - Para mim, essa é uma perspectiva que sempre foi muito desafiadora, sobretudo, porque existe uma grande expectativa sobre a juventude. De como os projetos que os mais velhos deixaram para nós continuarão seguindo e o que pode ser renovado e construído como horizonte na luta. Por isso, eu entendo esta como uma gestão histórica, porque é uma gestão com uma maioria de mulheres e eu sou uma mulher jovem, lésbica, ocupando essa posição que, mesmo dentro do Movimento Negro, ainda existem algumas contradições em termos de representação.

Eu entendo que o meu projeto é justamente buscar esse caminho, enquanto juventude, sempre na escuta das minhas mais velhas e dos meus mais velhos. Essa é uma sabedoria que eu aprendo dentro do movimento negro. De escuta dos nossos griôs, mas, ao mesmo tempo, de entender que as coisas precisam ser estimuladas à renovação. Então, na minha gestão, a gente busca representação, representatividade, paridade de gênero, discussões e debates importantes, como o combate à LGBTfobia. Pensar e valorizar a juventude para além do aspecto do genocídio, mas também pensar a juventude que, felizmente, está viva, conseguindo promover projetos artísticos. Eu vou nessa perspectiva.

Desde 2014, você é criadora de conteúdo nas redes sociais pelo @narrativasnegras onde debate temas como relações raciais, questões de gênero, LGBTQIAPN+, sociedade, política, literatura. Como você enxerga o poder e a potência dessas plataformas para debater e difundir tais agendas?
Quando eu me percebi influenciadora digital foi consequentemente depois de ter me tornado uma influenciadora militante. Eu sempre estive nas ruas, nas lutas, fazendo atos e atividades, pensando o combate ao racismo, o combate ao machismo e à LGBTQIAPN+ fobia. Isso fez com que se tornasse sólido esse lugar de referência nos ambientes que eu fazia fala, que eu participava e construía ações em prol de políticas públicas. Nas redes sociais, isso foi uma consequência que me deu outras oportunidades e outros caminhos.

Eu digo que, nos ambientes da política, eu me considerava numa certa bolha na Universidade ou em espaços que já estimulavam debates políticos. Mas, nas redes sociais, eu furo essa bolha e isso é muito bom, porque eu consigo alcançar pessoas que não tiveram acesso a determinados debates. Eu trabalho com literatura, é onde eu faço hoje o doutorado. E, a partir da literatura, eu discuto representatividade. Eu discuto temas sensíveis para a população negra. Desde as questões de feminismo até masculinidades negras, que são perspectivas completamente diferentes. Mas também discuto sobre saúde mental, autocuidado, minha rotina de estudante e militante. Ser uma jovem negra em uma sociedade onde estar viva, para mim, já é um grande ganho político. Então, eu falo muito sobre essas perspectivas de promoção de saúde e promoção do bem viver. Eu acho as redes sociais essa grande potência justamente para difundir a perspectiva de bem viver para a população negra.


Samira defende o estímulo à renovação em conjunto com a escuta dos mais velhos e mais velhas / Arquivo pessoal

Como uma das fundadoras da Marcha do Empoderamento Crespo, em Salvador, evento que se propõe discutir as questões relacionadas à identidade racial, mas que, sobretudo, ocupa as ruas com essa diversidade, quais desafios que estão postos na atualidade para a juventude negra da Bahia?
Quando eu participei do ato de fundação da Marcha do Empoderamento Crespo, a perspectiva naquela época era não se prender a uma geração. Então, a gente fazia atividades tanto para crianças, quanto para jovens, adultos e pessoas idosas também. E, pensando dessa perspectiva da juventude negra, naquela época, a gente discutia muito sobre Geração Tombamento, que era essa geração de festas como Afrobapho, Batekoo.  Pessoas jovens negras que possuem estéticas que rasuram a norma. Pessoas que não queriam mais alizar os seus cabelos, queriam cabelos coloridos, black power, tranças coloridas. Eu fiz parte dessa geração. E que entendia, nessa afirmação de identidade negra, um grande ato político. Por isso que a Marcha do Empoderamento Crespo reuniu tantas pessoas. Porque não era um debate estético por estético, porque, para nós, população negra, a estética é construção de identidade. Ela é fundamental para a gente se entender enquanto pessoa na sociedade. Sempre disseram para nós que não éramos bonitos, assim como sempre disseram para nós que nós não tínhamos capacidade para estar em determinados lugares. Então, esse empoderamento saiu do individual para o coletivo por entender que nós, enquanto jovens negros, temos o nosso campo de beleza, mas também poderíamos alcançar os nossos sonhos, as nossas oportunidades e buscar correr atrás dessas oportunidades. Então, essa Geração Tombamento é uma geração que não tombou nas balas, não foi vitimada pelo Estado. É uma geração que está construindo formas de resistência através das suas artes e expressões negras.

Você também integrou o projeto “Enegrecer nas escolas”, que visa discutir temas interseccionais pelo viés da literatura e da educação antirracista. Como contribuir para o enegrecimento dos currículos e para uma educação antirracista que saia do papel e ocupe, na prática, o dia a dia das salas de aula? Como você avalia essas realidades nas escolas públicas e nas particulares?
O “Enegrecer nas Escolas” foi um projeto que, na época, fazia parte do Coletivo Nacional de Juventude Negra Enegrecer. A gente tinha iniciativas de discutir temas da própria interseccionalidade nas escolas públicas. Inclusive, essa foi uma ação que eu também levei para a Marcha de Empoderamento Crespo, que é justamente fazer esse debate dentro das escolas e entender que aquela juventude, aquelas crianças precisavam acessar determinados discursos que eram importantes para sua construção de identidade e afirmação de identidade negra.

Então, eu tenho muito afeto pelo “Enegrecer nas Escolas”, porque eu sou uma educadora. Eu acredito na educação como prática de liberdade, mas também como uma perspectiva de transgredir, como nos ensinam bell hooks e Paulo Freire. Eu via o “Enegrecer nas Escolas” como uma oportunidade de discutir com os jovens negros, crianças negras, por exemplo, o combate ao racismo dentro daquele ambiente. Por exemplo, Ana Célia da Silva escreveu A Representação do Negro no Livro Didático. Ela é do MNU e é uma grande referência para nós. Ela já apontava o quanto a representação do negro nesses livros fazia com que crianças negras, jovens negros não se identificassem com a identidade negra. Cria-se uma certa repulsa. E o que a gente fazia era, justamente, rasurar essa perspectiva e questionar essas representações e trazer outras representações possíveis. Foi uma experiência muito linda. Eu ainda faço atividades nas escolas públicas e tenho muita prioridade em fazer isso. Nas escolas particulares também, porque quando a porcentagem de jovens negros nas particulares é pequena, o racismo é ainda maior. Então, é um espaço que eu faço questão também de fazer discussões e trazer ações de combate ao racismo.

Além de doutoranda em literatura e pesquisadora em trabalho doméstico no Brasil, você tem muita relação com o seu lugar de origem, a Chapada Diamantina. Lá faz parte do projeto “Mães Negras Chapadenses”. O que esse grupo de mães se propõe e qual a motivação para voltar para as suas raízes?
Eu estou doutoranda em Literatura e Cultura pela UFBA. Defendi uma dissertação sobre representações das empregadas domésticas na literatura brasileira. E hoje eu estou escrevendo sobre Torto Arado, pensando as Cantigas do Jarê, que é uma religião de Matriz Africana na Chapada Diamantina e da qual minha família faz parte. Essas duas pesquisas têm muito a ver com a com a minha construção de identidade. Assim como o projeto “Mães Negras Chapadenses”.

Eu não estou mais morando em Lençóis. Eu moro agora em Salvador por conta da UFBA mesmo, mas eu estou sempre em Lençóis, o tempo todo desenvolvendo projetos e ações.   “Mães Negra Chapadenses” nasceu desse desejo de reunir mães, mulheres negras de uma maioria que têm filhos LGBTs para discutir sobre a LGBTfobia, o combate ao machismo, o combate e prevenção do feminicídio, relações raciais. A maioria era de trabalhadoras domésticas. Então, discutir sobre o trabalho doméstico, discutir sobre seus direitos trabalhistas e também sobre autocuidado para essas mulheres, fornecer para elas uma promoção de saúde mental.

Foi experiência muito bonita, muito boa. Essas mulheres se conectaram muito. Uma delas foi a minha mãe. Foi uma oportunidade incrível de discutir essas questões com a minha mãe e com outras mulheres. Hoje, elas têm um grupo muito forte. Elas se fortalecem emocionalmente e é algo que eu acho muito incrível. Às vezes, a gente não tem noção do que as nossas mães negras passaram ou passam para que a gente exista e sobreviva. Mas isso também gera que elas, por vezes, abdiquem da sua saúde mental. Então, eu pude proporcionar através desse projeto “Grãos de Luz e Griô”, que é uma ONG importantíssima em Lençóis. Eu fiz parte dessa ONG desde criança e voltei para Lençóis com esse projeto que a ONG me convidou e foi uma iniciativa maravilhosa e que a gente tem tentado manter através de outros editais para que a gente continue alcançando mais mães negras.

O Julho das Pretas é um mês de lutas e de muitas resistências. Este ano, com o acréscimo do Bicentenário da Independência do Brasil na Bahia, o mês segue com muitas agendas combativas e de destaques para os feminismos negros. Que mensagem você deixa para as mulheres negras da Bahia?
O Julho das Pretas é uma iniciativa muito importante para a história do nosso país. E não é diferente quando a gente pensa a Independência do Brasil na Bahia. A gente sabe da importância, da potência das mulheres negras baianas para a luta do movimento negro e isso é algo muito histórico e ancestral. Então, eu aprendi aqui em Salvador, inclusive com mulheres negras do Instituto Odara, da Rede de Mulheres Negras, a importância da gente discutir sobre o bem viver para mulheres negras. Sobretudo, porque hoje, quando a gente vai pensar o cuidado, às vezes a gente acha que é autocuidado voltado para quem quer cuidados da pele, mas não. O autocuidado é justamente você ser assegurada, você ter segurança, você ser assistida nas políticas públicas. Você ser, enquanto mulher negra, acolhida nos ambientes institucionais. Não sofrer violência em qualquer âmbito, em qualquer aspecto, mas, sobretudo, ter acesso ao direito de cuidar da saúde mental.

E minha mensagem nesse Julho das Pretas é que a gente não fique só no campo da resistência, mas que a gente vá para o campo do cuidado. Que a gente vá buscar o nosso bem viver. A gente precisa estar bem, estar viva e estar com saúde para que a gente possa de fato, vivenciar a vida sob uma perspectiva mais leve. Ainda que a sociedade seja racista. Ainda que o nosso estado seja extremamente machista. Quando a gente pensa o aspecto das mulheres trans, isso é ainda pior. Mas como é que a gente pode acessar esse viver e ter isso como um horizonte, como perspectiva. Minha mensagem é essa. Eu desejo bem viver, desejo muito amor, afetividade para as mulheres negras nesse Julho das Pretas.

Edição: Gabriela Amorim