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Coluna

Des-Cobrimento: Cobrir o Passado e Caminhar na Escuridão do Presente

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"Há muito tempo a fumaça do des-cobrimento nubla a verdade, mas um outro originário sempre traz fogo à consciência" - Foto: Roberta França
Há uma fuga coletiva brasileira que insiste em não deixar a ferida colonial aberta ser tocada

Há uma fuga coletiva brasileira que insiste em não deixar a angústia, a ferida colonial aberta ser tocada, tratada. Há muito tempo a fumaça do des-cobrimento nubla a verdade, mas um outro originário sempre traz fogo à consciência feito criança interior que insiste em se fazer presente. O Brasil opta por viver a fantasia, o disfarce e manter sua "integridade" construída ao longo desses 500 anos. O que implicaria abrir mão da tradição de seguranças e privilégios? Foi invasão! Não é um país que acolhe a diversidade! Cair do seu narcisismo, descer a bandeira do mastro e escancarar a colonização é elaborar o passado e ir de encontro a sua própria culpa e loucuras de ordem e progresso.

O ego personalizado do Brasil pouco fala dos massacres, romantizam os milhões de mortos indígenas a partir da ideia de progresso brasileiro e são os colonizadores do passado e do presente os heróis da pátria. As armadilhas coloniais insistem em nos aprisionar no falso heroísmo europeu que aqui chegou e tudo des-cobriu. Reconhece-se que das narrativas brasileiras não surgem questões puramente verdadeiras sobre nós povos originários. Como diz a ativista indígena Uýra: “De nós não se fala, não se lembra, para nós não se cria monumentos”. Pois não lembrar é cobrir, varrer para debaixo do tapete, resistência… e assim seguimos, todos, colapsando no presente.

Mas afinal, quem quer falar de genocídio? Da escravidão? Do desterro? Do apagamento cultural?

Demarcação de terras? Garimpo ilegal? Estupro de crianças e mulheres indígenas?

Quem quer tocar no trauma do Brasil e falar sobre a mãe indígena morta pelo pai português? É complexo.
 
Há uma escuridão na história do Brasil que precisa vir à luz. O processo de amadurecimento, aqui, só será possível através da passagem por momentos de dor e sofrimentos causados. (Re)lembrar. Deixar-se cair, ir de encontro às suas vilanias ancestrais. Se responsabilizar, se engajar na roda da própria existência e parar de terceirizar a mudança e o cuidado com o que se destrói.

O Brasil está mais engajado na fuga do que na causa.

Por exemplo, nos livros de história as descrições e caracterizações do que é ser indígena são eurocêntricas e nada atendem ao que somos, gerando na sociedade leitora envolvente ideias de que somos seres místicos e antiquados, que não compartilhamos dos conhecimentos da “modernidade”, selvagens sem almas. O escopo perfeito para continuar justificando e cobrindo as violências que se repetem, repetem, repetem… O passado é presente. Na arte, mais especificamente no quadro “A primeira missa do Brasil”, do pintor brasileiro Victor Meirelles, vemos “índios” pelados, felizes, sendo catequizados com harmonia e tranquilidade, - uma cena clássica do tão conhecido des-cobrimento. Uma leitura da história brasileira que degreda às populações indígenas um papel de subalternidade, como se tivéssemos aceitado a dominação europeia pacificamente. O que a literatura da sociedade dominante ensinou sobre nós? O que a arte provocou sobre nós? Por que esse padrão de des-cobrimento?

Acolher o passado e se engajar na culpa é fazer diálogos (im)possíveis com o presente. É reconhecer a pluralidade epistêmica e afetiva do mundo e estabelecer ecologias de saberes novos e antigos. Suspender o Eu etnocêntrico e escutar o outro lado da história que por muito tempo foi silenciado é parte do processo de saber lidar com o passado.

A visão indígena acredita que passado e presente coexistem, não há um sem o outro. Para Daniel Munduruku, é o presente, o passado atualizado, e o passado é o sentido do presente. Se há ferida no passado, há cura no presente e vice-versa. Estamos em processo permanente de reestruturação e de mudanças para (sobre)vivência e (re)existência própria. À medida que o tempo passa, muda-se a história e o modo de vida para tudo e todos, mas o passado continua sendo escola.
 
Então, por que manter-se num padrão violento ao invés de fruir rumo ao torna-se verdadeiramente consciente do mal-estar causado? Se o racismo, a violência, o massacre, o roubo de terras permanecem como 500 anos atrás, por que delegam à nós a imagem de antiquados, que permanecem congelados no tempo? Se nós povos indígenas acolhemos nossa ancestralidade com tudo que a ela pertence, por que os não-indígenas não?

Aceitar o passado, criar estratégias de lidar e aprender com ele e curar esta terra e todos que a habitam é um projeto de tomada de consciência coletiva urgente. Não é sobre fugir do que se foi, mas mudar o que se é. A consciência, felizmente, pode ser (re)educada. Possibilitando utilizar do aprendizado para transformação das relações humanas, segundo Daniel Munduruku. Mas para aprender é preciso desaprender. Desaprender a arte, as convenções impostas para aprisionar, os livros de histórias, as repetições… Esvaziar-se das inverdades ocidentais para preencher-se, acordar, crescer.

Pensemos que acolher o verdadeiro passado implica em entrar em contato com a multiplicidade, liquidar nossos conceitos enraizados, equiparar, incluir, destruir políticas de ódio e desigualdade… não se trata somente de conhecer o que aconteceu, mas tentar no presente construir relações, observar possíveis padrões e evitar que erros cometidos no passado se repitam. O passado tem muito a nos ensinar sobre o uso de saberes e práticas ancestrais, em diferentes campos da vida. Novos caminhos e possibilidades podem ser criados a partir da elaboração do passado. E é com esses saberes e práticas que podemos (re)criar a realidade, (re)pensar cartografias e relações, (re)ligar presentes e (re)orientar caminhos método-lógicos. Atualizando-nos com o passado, seguimos para o futuro, que é o aqui e agora.

Edição: Gabriela Amorim