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Coluna

A importância do papel fiscalizador do Estado no mercado de ações

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Americanas têm mais de 1.700 lojas no país e cerca de 18 mil funcionários - Divulgação
Este não é o primeiro caso de empresas dos três proprietários com acusações de fraudes contábeis

Prof. Dr. Penildon Silva Filho
Professor da UFBA e doutor em Educação

Prof.Dr.Adm. João Marcelo Pitiá Barreto
Professor da UFBA e ex-auditor da Price Waterhouse Coopers (PWC)

Recentemente, os meios de comunicação e as mídias sociais noticiaram o caso das Lojas Americanas, empresa muito conhecida pela população e grande empregadora de mão de obra que estaria em concordata por equívocos contábeis. O escândalo é o maior da história do mercado de capitais brasileiro e um dos maiores do mundo. Para surpresa de todos e desespero de alguns, tudo isso tem início quando Sergio Rial deixou o comando das Lojas Americanas apenas 10 dias após assumir o cargo de CEO (Chief Executive Officer). A decisão de sair se deu ao descobrir um verdadeiro lamaçal nas demonstrações contábeis da varejista. A fraude contábil gerenciou o resultado do passivo. Quando anunciado pelo seu ex-presidente, as Americanas deviam cerca de R$ 20 bilhões, mas com base em novo levantamento interno já passam de R$ 40 bilhões. 

O erro na contabilização do passivo é algo que chama muita atenção para quem é da área financeira. Vale destacar alguns aspectos: (1) trata-se de uma contabilização de baixa complexidade, que qualquer estudante de disciplinas introdutórias de Contabilidade (a exemplo de Administração Contábil I) saberá executar; e (2) teve a tutela de uma das maiores empresas de auditoria do mundo e dos 3 maiores bilionários do país, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles.

Este não é o primeiro caso de empresas dos três proprietários com acusações de fraudes contábeis. Em 2019, a Securities and Exchange Commission (SEC) — reguladora do mercado de capitais nos Estados Unidos — acusou a empresa Kraft Heinz, uma das maiores empresas no setor de alimentos, por erros contábeis. Os três bilionários tinham investido um total de R$ 23 bilhões na aquisição da gigante em 2013. Neste caso, as acusações envolviam, especialmente, a área de compras da empresa, acusada de manter contratos falsos com fornecedores e mascarar o custo que tinha com eles. O resultado disso foi um Ebitda (acrônimo em inglês para Earnings before interest, taxes, depreciation and amortization) inflado e que não condizia com a realidade, o que obrigou a companhia a republicar seus balanços com as devidas correções e uma baixa contábil de US$ 15,4 bilhões. Em 2021, foi acertado um acordo de US$ 62 milhões entre a Kraft Heinz e a SEC. Desde então, o trio vem reduzindo sua participação na empresa com a venda de ações.

No caso das Lojas Americanas, o gerenciamento das demonstrações se deu, resumidamente, em alocar dívidas bancárias na conta contábil de fornecedor. Isso teve uma série de consequências. (1) Uma delas foi ter capital de terceiro por um custo mais baixo. A empresa levou os investidores e credores ao erro no momento em que não foi transparente e assertiva em seus dados. (2) A outra consequência, com essa manobra contábil, foi o aumento dos lucros da companhia por meio da alavancagem financeira. Alavancagem financeira é a utilização de dívida para aumentar o retorno sobre o capital próprio. Isso é feito tomando emprestado dinheiro para investir em ativos que se espera que gerem rendimentos maiores do que o custo do empréstimo. A alavancagem pode aumentar os lucros, mas também aumenta o risco de insolvência, pois a dívida precisa ser paga independentemente do desempenho dos ativos.

Diante de todo o escândalo envolvendo as Americanas, outras empresas também foram contaminadas. O grande temor do mercado é que essas outras empresas também tenham suas demonstrações fraudadas. Neste contexto, os investidores refletem: qual seria a real capacidade das firmas de auditoria serem de fato imparciais sem serem influenciadas por seus clientes? Neste caso, parece que a PWC não cumpriu com seu papel como firma de auditoria, protegendo o investidor e o público em geral, garantindo que os relatórios financeiros das empresas sejam precisos e confiáveis. Outro ponto que causa questionamento é que, mesmo após a exposição da fraude, a empresa não alterou a composição do Conselho de Administração. Se existem esclarecimentos ainda a serem feitos sobre quem seriam os responsáveis pela falha e a empresa não abre uma investigação interna e mantém tudo como está, cria-se uma atmosfera de insegurança, uma sensação de que possíveis responsáveis ainda tenham como se beneficiar por manterem acesso privilegiado às documentações da empresa.

Num cenário onde uma gigante do mercado de ações padece e corre o risco de levar consigo inúmeras empresas e famílias e, além disto, a grande mídia não aborda devidamente o tema e tenta não focar nos verdadeiros culpados, surge a pergunta: qual seria a solução para isso?
Numa análise com base na teoria que surgiu desde a Crise de 1929, é necessário a sociedade implementar mecanismos gerenciais cada vez mais eficientes para suprimir atitudes oportunísticas dos seus agentes. Sendo assim, o papel do Estado é importantíssimo por meio do fortalecimento de suas instituições para que possa exercer não só o papel fiscalizador, mas também punitivo e proativo nas situações oportunas. 

O advogado que representa os acionistas minoritários das Lojas Americanas peticionou as seguintes reivindicações: (1) investigação dos diretores executivos, conselheiros e acionistas majoritários das Americanas, assim como agentes de auditoria e sócios da empresa PWC; (2) afastamento de todos os conselheiros e diretores executivos em exercício de funções de direção ou administração das Americanas, sobretudo os que compõem o Conselho de Administração; (3) recolhimento de valores dos investigados, a fim de ressarcir as vítimas pelos danos sofridos ou expedição de ofício à Comissão de Valores para execução de medida assecuratória em relação a ativos em nome de cada um dos representados; e determinação de indisponibilidade dos imóveis dos requeridos junto à Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB); (4) solicitação de todas as medidas cautelares necessárias para garantir o ressarcimento do dano às vítimas; quebra de sigilo de dados telemáticos sobre os materiais eletrônicos dos investigados; e sigilo do presente expediente.

Esperamos não só que a petição seja aceita, mas também que a opinião pública cresça sobre o tema e nossas instituições públicas se empoderem para diminuir esse clima de impunidade que, hoje, toda a sociedade padece. O Estado necessita assumir seu real papel de zelo pela comunidade, o qual, seus governantes, ao serem empossados, juraram realizar.

O fechamento de uma organização como as Lojas Americanas prejudica a sociedade em geral. Fornecedores não terão como alocar sua produção, milhares de colaboradores perderão seu emprego, os clientes ficarão limitados sobre onde encontrar os itens que estavam acostumados a consumir, os pequenos acionistas se sentirão ludibriados e os impostos devidos não serão arrecadados.

Focalizando a empresa varejista objeto deste pronunciamento, imaginem que tem cerca de 40.000 empregos diretos, fora os indiretos, tais como fornecedores, prestadores de serviços, senhorios dos imóveis alugados e os pequenos investidores que arriscaram suas poupanças em busca de rentabilidade. Também estarão prejudicados os bancos, fundos de previdência, que impactarão na vida futura dessas pessoas e o Estado que não disporá da arrecadação da receita de impostos para alocar nas necessidades da população.

Diante desse desmonte, há a necessidade de o Estado exercer seu papel estabilizador da economia, adotando providências e medidas para acompanhar essas grandes organizações de forma preventiva, impedindo que situações dessa natureza se repitam e impactem a sociedade. O papel estabilizador do Estado, nesses casos, precisaria ser de um interventor mesmo porque ele deveria cuidar da existência das grandes organizações e mesmo punir em caso de desvios gerenciais. Por exemplo, seria imprescindível a criação de um setor dentro da CVM com o objetivo de acompanhar a saúde financeira das empresas que alcancem determinados níveis de faturamento e absorvam quantidade significativa de mão de obra.
Como medidas úteis nesses casos, a CVM, mediante o setor que gerenciaria os grandes empreendimentos, precisaria analisar o grau de endividamento e a composição do passivo das empresas; além de rever a política de atendimento dos ganhos aos pequenos acionistas, principais atingidos em momentos de crise. Soubemos que a Suíça desenvolve um programa de acompanhamento da atuação da Nestlé, cujo faturamento interno é em torno de 4%, mas de representatividade no exterior. Então, a arrecadação da empresa em outros países é importante para a Suíça e ela tem medidas próprias para acompanhá-la.

É importante que façamos a inferência do poder que um dos três bilionários envolvidos diretamente nas irregularidades graves das Lojas Americanas e que já estiveram envolvidos em problema similar no Estados Unidos, que é o instituidor e financiador da Fundação Lemann, que tem tentáculos e influência direta em diversos  níveis da Educação brasileira. Fundação que leva à frente uma reforma educacional que se consubstancia com o “Novo Ensino Médio” de 2016 e a venda de material didático e testes de avaliação que rendem bilhões de reais. Essa reforma educacional da Fundação Lemann e de outras fundações e ONGs associadas a ela, suas “spin offs”, rebaixa e retira conhecimentos da aprendizagem de amplas parcelas da população pobre e trabalhadora do Brasil na Educação Pública, assim como trabalha sem uma formação com valores e cultura mais ampla. Também, está na hora do Estado brasileiro assumir seu protagonismo na definição e execução de políticas públicas de Educação, numa perspectiva de Educação Integral e de qualidade, buscando não terceirizar sua missão institucional educacional para grupos que possam estar envolvidos em escândalos como neste caso.

Enfim, essas sugestões implantadas poderiam impactar a economia brasileira como todo porque os investidores se sentiriam protegidos e confiantes em investir seus parcos recursos. É importante que o Estado assuma sua governança não só no setor público, sob sua jurisdição, mas inclusive nas grandes organizações, denominadas em países desenvolvidos como organizações de interesse público pelo alcance de suas atuações. Talvez, a sociedade se sentisse mais confiante em investir em ações, fortalecendo o mercado de capitais brasileiro, que tem uma grande defasagem de crescimento.

*Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Gabriela Amorim