Bahia

Entrevista

"A sociedade não pode renunciar à universidade, não pode amesquinhar seu horizonte", diz Salles

João Carlos Salles, ex-reitor da UFBA, faz um balanço da luta em defesa da educação e do papel da universidade pública

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
"A universidade pública no nosso modelo é uma forma de vida que envolve um projeto essencial, que não pode ser colocado a reboque dessa ou daquela determinação externa", afirma professor - Lia Sfoggia

A educação foi um dos setores que mais sofreram com a política econômica do governo federal desde o impeachment de Dilma Rousseff. Na última quarta (05), o governo anunciou mais um corte: um bloqueio de mais de R$ 1 bilhão nas verbas de custeio da educação superior do país. A medida coloca novamente em risco as instituições públicas de ensino superior, que podem não ter dinheiro para pagar trabalhadores e custos de operação.

Para trazer um balanço da luta em defesa da universidade pública nos últimos anos, entrevistamos com o ex-reitor da Universidade Federal da Bahia, João Carlos Salles. Professor do Departamento de Filosofia, João Salles deixou o cargo de reitor em agosto, após dois mandatos em que vivenciou o processo nacional de desmonte e desfinanciamento das universidades públicas. Nesta conversa, falamos sobre as dificuldades enfrentadas pelo ensino público superior no Brasil, as resistências que têm se organizado e a importância da defesa da universidade pública, gratuita e acessível para todos e todas.

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O senhor esteve à frente da reitoria da UFBA por 8 anos de muitas mudanças na conjuntura nacional. Poderia fazer uma análise pra gente do que representaram esses anos para a universidade pública nacional?

Nossa gestão começou em setembro de 2014, naquele momento se preparou e se fez uma mudança muito brusca da orientação orçamentária relativa à universidade. Foi aplicada à universidade uma dura medida de austeridade. Um grave equívoco. Essa medida de austeridade não significava um desejo de desmonte da universidade, mas uma incompreensão, sim. Quando essa incompreensão estava sendo revertida, nós tivemos o impeachment. Com isso, nós voltamos a ter a universidade como um certo alvo, não só de restrição orçamentária, mas de suspeição. Vale lembrar que é no governo Temer que conduções coercitivas a reitores foram feitas. Se lançou sobre a universidade uma suspeição que visava a reduzi-la, assim como um conjunto de políticas pretendiam reduzir a importância do Estado, a extensão do Estado. 

Depois, vejam só, a situação já grave, se tornou de ataque explícito. Ou seja, o governo Bolsonaro escolheu a universidade como alvo, não sem razão, devemos dizer. Porque, afinal de contas, um governo que é obscurantista, que é autoritário, só vai encontrar na universidade uma resistência, uma forma natural de resistência que a universidade oferece ao obscurantismo, à ignorância, ao preconceito, à discriminação. Não que a universidade não tenha dentro dela expressões de uma situação que decorre de uma sociedade autoritária como a nossa, excludente como a nossa, perversa em muitos aspectos, preconceituosa, é claro que a universidade também reflete isso na sua estrutura. Só que a universidade é o melhor lugar pra combater o preconceito, pra combater o mero conflito, para criar um diálogo, para pensar a sociedade, para produzir conhecimento, formar pessoas com qualidade, a universidade é tudo isso. 

A universidade, portanto, foi um lugar de resistência e um lugar exemplar também no enfrentamento de várias questões, inclusive, da própria pandemia. Não só oferecendo seu saber, sua competência, mas também tomando atitudes fortes de preservação da vida. Para nós, a universidade mostrou essa sensibilidade, essa condição desse lugar de conhecimento e solidariedade, e que por isso mesmo foi exemplar na tentativa de proteção da comunidade. E lembrar que a vida é inegociável.

A universidade, portanto, foi um lugar de resistência e um lugar exemplar também no enfrentamento de várias questões, inclusive, da própria pandemia

Embora a universidade pública venha sofrendo ataques à sua imagem, foi na UFBA, por exemplo, que se doutorou a cientista responsável por identificar o genoma do vírus da covid-19 aqui no Brasil. Qual o papel da universidade pública na produção de ciência no país?

A produção científica, nosso país, é feita sobretudo na universidade. Se é assim, na universidade, nós esperamos contar com respostas adequadas. É da universidade que partem respostas concretas a problemas vividos por nosso povo. Ou seja, respostas concretas a situações de saúde, a situações relativas a políticas públicas, relativo à formação de mão de obra, mas é na universidade que vamos encontrar essa condição de produção de ciência, de cultura e de arte. Isso já é uma forma de vida exemplar, e é por isso mesmo que ela precisa ser protegida. Somente o ignorante e o preconceituoso vão virar as costas para essa instituição que, no nosso país, é responsável pela produção da ciência. E não só pela sua pesquisa também temos resultados de inovação muito importantes, aplicação muito imediatas, de sorte que a universidade tanto opera no imediato quanto, essencialmente, também na longa duração, como uma instituição de Estado e não apenas como um projeto de governo.

Diante do avanço do autoritarismo no Brasil, que atingiu também a universidade pública, qual a importância de defender a autonomia universitária?

A autonomia universitária significa a capacidade que uma instituição que produz conhecimento, que forma pessoas, que tem laço interno, íntimo, indissociável, como está definido na Constituição, entre ensino, pesquisa e extensão, a defesa da autonomia significa que essa instituição pode deliberar sobre seus projetos, seu destino, sobre a relação que mantém com a sociedade. Defender a autonomia é defender essa instância a qual se associa um projeto de nação que não seja desigual e que seja, sim, profundamente democrático. Ou seja, a universidade guarda em si essa condição exemplar de realizar conhecimento e de realizar deliberações onde se preserva liberdade de expressão, liberdade de cátedra, de pesquisa, preserva o compromisso com a sociedade e tem padrões públicos de controle de qualidade que não se subordinam a exigências, sejam de partidos, seja do mercado, seja de qualquer outra instância.

Defender a autonomia é defender essa instância a qual se associa um projeto de nação que não seja desigual e que seja, sim, profundamente democrático

As universidades sofreram muitos bloqueios e cortes financeiros nos últimos anos. Quais os caminhos possíveis para a reconstrução da universidade pública no Brasil nos próximos anos?

O país está em frangalhos, podemos dizer assim, ou seja, a investida contra a universidade, a grave redução orçamentária, isso tem atingido essa instituição fundamental, mas tem atingido também políticas públicas as mais diversas. Sofre o meio ambiente, sofrem as cidades, sofre a classe trabalhadora, é um cenário muito difícil. Alguns, em um cenário como esse tão grave, podem imaginar que a universidade deva ser apenas um instrumento imediato, que a universidade cumpre a sua missão apenas distribuindo diplomas, alguns esquecem nesse momento que a universidade é uma aposta numa formação qualificada, um processo de ensino que envolve pesquisa, envolve extensão. Ou seja, a universidade pública no nosso modelo é um projeto essencial, é uma forma de vida que envolve um projeto essencial, que não pode ser colocado a reboque dessa ou daquela determinação externa e, por isso mesmo, precisa ser valorizada como projeto de Estado. Ou seja, projetos civilizatórios não podem ser subordinados a medidas de austeridade, porque eles são fundamentais às saídas mais largas que a nossa sociedade merece.

E, nesse sentido, eu só posso imaginar o grande desafio que é fazer a sociedade, não é simplesmente o governo, mas a sociedade escolher a educação, a saúde como valores específicos da ação do Estado que devem, portanto, receber a dotação conforme esse projeto de nação, que envolve a universidade que acolhe, por exemplo, que tem uma assistência estudantil capaz de fazer com que quem tem acesso à nossa universidade, sobretudo nosso povo, tendo acesso à universidade, tenha as condições de ter desenvolvido o seu talento, ver aflorar seu brilho no espaço da universidade. É um grande desafio que nós temos. A sociedade não pode renunciar à universidade, não pode amesquinhar o seu horizonte. E isso será, de fato, um trabalho não só do governo, mas de uma mobilização constante dentro da universidade que precisa defender seu espaço e lutar por ele. 

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E qual a contribuição que a universidade pública pode dar à sociedade na reconstrução das políticas públicas e garantias sociais que perdemos nos últimos anos?

A universidade é lugar de reflexão, onde se faz o bom diagnóstico, onde se pode examinar em profundidade as causas diversas das mazelas que nos afligem e construir soluções, orientar políticas públicas, fazer com que a sua competência esteja a serviço da sociedade, mas também a serviço da proteção de saberes que não têm aplicação imediata. É sempre bom ressaltar isso: a universidade não é uma mera ferramenta, com uma utilidade imediata. Ela é um lugar onde todas as áreas do saber devem ser protegidas, onde matrizes epistemológicas diversas devem ser acolhidas e poderem dialogar entre si. É um lugar portanto de uma tolerância epistemológica profunda, porque ela pode sim, a partir dessa multiplicidade de olhares, fazer com que as políticas públicas de fato traduzam mais permanentes, mais decisivas da nossa sociedade.

 

Edição: Lorena Carneiro