Bahia

Entrevista

"Todas nós precisamos estar no centro da agenda dos direitos sexuais e reprodutivos"

No dia de luta pela descriminalização do aborto, a ativista Emanuelle Góes aponta os principais desafios sobre o tema

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Apesar da "maré verde" na América Latina, a pesquisadora acredita que a luta pela descriminalização do aborto ainda enfrentará muito entraves no Brasil - Arquivo pessoal

O dia da luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe tem um nome tão extenso quanto o histórico de opressão e de combate à violência contra mulher. Celebrado no dia 28 de setembro, a data nasce da necessidade de visibilizar a situação do aborto e de gerar conscientização sobre o tema. Por isso, desde a 5ª edição do Encontro Feminista Latino-Americano (EFLAC) ocorrido na Argentina, em 1990, que essa data se repete e se reafirma ano a ano. 

Para contribuir com essa reflexão, o Brasil de Fato Bahia convidou a doutora em Saúde Pública e epidemiologista Emanuelle Góes. Enfermeira de formação e de experiência prática no atendimento da juventude, Emanuelle soma em sua carreira mais de 15 anos de construção e de debate sobre desigualdades raciais e racismo nas trajetórias reprodutivas de mulheres negras do Brasil. No ativismo pelo movimento de mulheres negras, Emanuelle Góes é pós-doutorada pelo CIDACS/Fiocruz/Bahia e assina a Coordenação Científica da Associação de Pesquisa Iyaleta, Fellow do Ubuntu Center  (Drexel University /EUA). 


A discussão sobre a necessidade de legalização do aborto é somente a ponta do iceberg / Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Brasil de Fato Bahia: Como grupo social específico, as mulheres possuem características próprias e, consequentemente, necessitam de direitos que incorporem essas características. Esse é o caso dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres que, por muito tempo, foram esquecidos e ignorados por envolverem controvérsias de ordem moral e religiosa. O que são direitos sexuais e reprodutivos e para o que eles servem?

Emanuelle Goés: São direitos reservados às pessoas no que se refere às suas escolhas sexuais, as suas escolhas na reprodução. Desde escolher ter filhos ou não e isso ser respeitado, a partir dessa autonomia. São direitos do exercício reprodutivo, do exercício da sexualidade, das suas escolhas relacionadas a identidade de gênero, de orientação sexual e de como o estado precisa prover e garantir que esses exercícios, que esses direitos sejam assegurados por meio também de fornecimento de mecanismos institucionais. 

Por exemplo, na saúde reprodutiva, o serviço de saúde precisa promover e pensar em insumos e métodos contraceptivos, nas sobretudo planejar educação sexual para adolescentes, meninas e meninos. Orientação a um acesso de qualidade em relação ao pré-natal, ao parto e ao puerpério. Uma atenção humanizada ao abortamento. As mulheres que por algum motivo estão abortando (seja por motivação provocada ou espontânea) o serviço deve oferecer um atendimento humanizado, acolhedor e resolutivo em relação a essa questão. Então, está nesse escopo o entendimento dos direitos sexuais e reprodutivos e como o Estado Brasileiro deve atuar para assegurar essas garantias por meio de políticas públicas na saúde, mas também na educação, nas políticas sociais e em outras agendas que estão relacionadas.


No Brasil, o aborto é permitido em casos de anencefalia, gravidez de risco ou fruto de violência sexual / Fernando Frazão/ Agência Brasil

O Brasil vive inúmeros retrocessos políticos. E se de um lado, temos a luta feminista que batalha pelo entendimento da autonomia do corpo da mulher, do outro, assistimos a inúmeras discussões fundamentalistas que volta e meia tentam aprovar Projetos de Lei para proibir o comércio e a distribuição de métodos contraceptivos, a exemplo do dispositivo intrauterino (DIU), e da pílula do dia seguinte. Quais os reais entraves para que as mulheres acessem integralmente os seus direitos reprodutivos? Quais as perspectivas brasileiras de avanços de políticas públicas neste tema?   

No Brasil, a gente viveu um certo avanço, em determinado momento. Depois, estagnação. E nesse último governo, de fato, retrocesso. Um retrocesso do ponto de vista da sociedade, porque muitas coisas não foram modificadas no ponto de vista da lei, mas sofrem influência de como as pessoas se comportam ou definem, ou tomam decisões diante de determinada situação, sobretudo, baseada na questão da moralidade e da religião. Na contramão dos direitos. Os direitos humanos a que me refiro aqui, os direitos sexuais e reprodutivos. 

A gente vai testemunhar inúmeros casos de meninas e adolescentes em contexto de violência sexual que não conseguiram interromper a gravidez gerada em decorrência dessa violência. Não conseguiram acessar o serviço de aborto legal por conta de todo esse ideário. Da enxurrada de diálogos em torno da moralidade que vem a impactar diretamente os direitos sexuais e reprodutivos. 

A gente vai ter várias questões relacionadas a isso, muitos entraves, sobretudo no que se refere ao período da pandemia. O aumento de casos de morte materna, a falta de acesso a serviços de pré-natal, a diminuição do fornecimento de métodos contraceptivos - pílulas, DIU, injetáveis, camisinhas. E o nosso maior entrave de todos ainda é a garantia de acesso a um serviço de qualidade e a um serviço contínuo.  É certificar de que a mulher e não só ela, mas todas as pessoas, na busca pela garantia desse direito, vão ter acesso a qualquer método contraceptivo. Vão ter acesso à informação, independentemente da idade. Inclusive, as adolescentes que sofrem todos os estigmas quando procuram por esse tipo de entendimento. Em geral, as profissionais de saúde provocam constrangimentos e discriminações no contato com essas jovens. 

Então a gente ainda tem muito a caminhar no sentido do que é preconizado nas políticas públicas, por meio de leis, mas grande parte das vezes, quando chega na prática, na ponta, isso não acontece. 

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Quando falamos em femininos e nas lutas feministas que são travadas em nossos dias, é importante que a gente destaque o componente racial como um grande marcador das diferenças sociais e econômicas que afetam, dividem e interferem  nessa luta por direitos das mulheres. De que maneira as desigualdades sociais no Brasil se refletem nas mulheres negras? Quais são as barreiras individuais, sociais e estruturais que ameaçam a vida plena dessas mulheres?

A gente identifica nas pesquisas, com a comprovação de evidência científica, que o racismo é um grande marcador de opressão estrutural que atravessa a trajetória sexual e reprodutiva das mulheres negras. A justiça reprodutiva vai defender a justiça social com o uso dos direitos reprodutivos de maneira correlacionada. Por exemplo, se uma mulher, uma adolescente, uma pessoa com útero não tiver uma moradia adequada, ela não vai conseguir fazer o exercício das escolhas sexuais e reprodutivas porque esse espaço da violação não permite. 

Essa agenda da justiça reprodutiva coloca centralmente a discussão do racismo como instrumento que interrompe, atravessa e que vai diferenciar e interferir no percurso das mulheres negras e indígenas brasileiras.  No contexto estadunidense, isso também acontece com as mulheres de cor. O racismo impacta e torna o percurso mais sinuoso no que se refere a essas experiências todas. Por isso, a gente tem chamado atenção e olhado para essa agenda, a partir da lente da justiça reprodutiva, porque aí sim as nossas demandas são colocadas de maneira central.


Colômbia, Argentina e Chile foram alguns dos países que descriminalizaram o aborto no último período na América Latina / Ronaldo Schimidt/AFP

Diversos países da América do Sul, a exemplo do Uruguai e da Argentina, já sancionaram a legalização do aborto. No Brasil, esse debate não avança e até situações de estupro encontram dificuldades de serem legalizadas. Quando essa onda progressista vai chegar aqui? 

Na América Latina estamos vivendo o que chamamos de maré verde. A maré feminista tomando a América Latina no que se refere a agenda da legalização do aborto. A cidade do México, o Uruguai, a Argentina, a Colômbia, o Chile são países que vêm avançando nos últimos anos na legalização ou descriminalização do aborto. E quando isso vai chegar aqui no Brasil? Para responder a essa pergunta é preciso entender que a gente vive a influência de um outro lado que é o retrocesso dos EUA. A retirada da Lei do supremo que trata da legalização do aborto nos EUA. Com o retrocesso que passa pela retirada desta lei, elas, agora, passam pelos estados que vão decidir sobre isso de maneira autônoma e independente região a região. A gente tem visto nos estados mais tradicionais, mais à direita, veto total do acesso ao aborto legal e isso também vai impactar o Brasil. 

A gente vai ter esse avanço na agenda da América Latina, mas também vai ter esse retrocesso, particularmente, nos Estados Unidos. O que a gente precisa fazer? Como essa onda progressista avança e chega aqui para nós?  O debate sobre o aborto precisa se tornar uma discussão comum. Sobre tudo o que a gente fala, o aborto precisa estar ali presente. É um tema que faz parte da história das pessoas. Seja a pessoa em si que realiza, que faz a escolha, que toma a decisão ou seja o outro que conhece sempre alguém. O aborto ainda é um tabu. Está no campo da moral, do religioso e não do direito. Então, isso precisa se tornar comum para que a sociedade entenda que essa é uma questão cotidiana. O parto, o aborto fazem parte das trajetórias sexuais e reprodutivas das pessoas. Isso precisa se tornar normal porque só legalizar sem trazer para o debate não ajuda, mesmo com a existência da lei.

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Um caso recente que voltou a repercutir na imprensa é o da menina de 11 anos, no Piauí, que foi vítima de estupro, teve o direito ao aborto negado e, agora, está novamente grávida vítima pela segunda vez da mesma violência. O que dizer desse caso e como conter os estupradores já que as leis atuais não garantem proteção e ainda acentuam a condição de vulnerabilidade de mulheres e meninas?

É o que a gente chama de violência de repetição. Pela ausência do Estado diante daquela situação em que a primeira ação não foi resolutiva porque ela não conseguiu interromper a gravidez, ela continuou no ciclo de violência. Este é o quadro mais perverso que é viver em estado de violação. Você vê uma menina de 11 anos ter duas gestações seguidas fruto de violências sexuais, é mostrar como a gente está distante de pensar uma agenda de direitos sexuais e reprodutivos de forma a olhar com justiça. Como é que essa menina está inserida dentro das políticas sociais? Como é que o Estado se propõe a proteger essa menina com base em todas as leis que as questões de gênero e de mulheres, asseguram? Tem aí um total descaso. Eu nem sei qual a palavra mais adequada para chamar essa situação. 

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O movimento feminista tem cumprido um papel central na luta pela descriminalização e legalização do aborto no país / Arquivo MMM

Quais caminhos precisamos construir para avançar? Iniciativas coletivas, da sociedade civil, grupos de acolhimentos? Quais perspectivas precisamos fortalecer para abraçar e fortalecer redes de mulheres vítimas da violação dos seus corpos e de suas existências?

O movimento feminista e o movimento de mulheres têm feito muita coisa. Se a gente não tivesse a atuação do movimento, muitas situações não teriam se encerrado com o desfecho positivo ou com um direito garantido. Tanto o caso da menina do Espírito Santo na pandemia, todo o caso que aconteceu com ela e a dificuldade de acesso ao aborto legal na sua cidade, no estado do Espírito Santo. Ela teve que ir para Pernambuco para realizar o aborto legal em Recife. E tudo isso só aconteceu e ela só conseguiu porque o movimento feminista fez toda a movimentação possível e impossível para garantir o que deveria ser que é o serviço de acesso ao aborto legal. No mesmo caminho, a história mais recente, da menina de Florianópolis que a juíza queria que ela “esperasse mais um pouquinho”. O movimento feminista denunciou e conseguiu interromper a gravidez dessa menina de 11 anos. Infelizmente, todas as coisas que a gente consegue avançar ainda é porque o movimento social, em particular, o movimento feminista e o movimento de mulheres é muito forte e tem atuado para que essas violências não avancem. 

O que a gente vai precisar, o que a gente vai viver no ano que vem é retomada das políticas públicas. Refazer os caminhos, reorganizar muitas coisas que ficaram de fora, mesmo na gestão mais promissora, pra ter aí no horizonte os direitos sexuais e reprodutivos na sua plenitude. Para isso é preciso olhar também para a justiça reprodutiva porque vai trazer a lente que considera todos os marcadores de opressão que atravessam as mulheres para afirmar que as experiências não vão ser semelhantes.

As mulheres negras precisam que seja visto como o racismo prejudica a sua chegada no serviço, as adolescentes da mesma forma. Então, pensar um pouco nessa direção de um novo giro epistemológico, um novo giro em novas políticas que olhem para essas dimensões de gênero, raça, sexualidades, identidade de gênero, mulheres com deficiência, em contexto de rua, privadas de liberdade. Todas nós precisamos estar no centro da agenda dos direitos sexuais e reprodutivos. Isso pra mim seria o maior avanço dentro da agenda no Brasil.      

 

Edição: Lorena Carneiro