Bahia

Entrevista

"A gente tem a missão de fazer a universidade se tornar popular, ser pintada de povo"

A vice-presidenta da UEB Larice Ribeiro analisa os desafios da educação e o papel do movimento estudantil baiano

Brasil de Fato | Vitória da Conquista |
A luta das entidades estudantis foram centrais na resistência ao governo Bolsonaro - Levante Popular da Juventude

Um dos pontos centrais do debate das eleições de 2022 é, sem dúvida, a educação. Sufocada pela Emenda Constitucional que limita o teto de gastos na área e pelos sistemáticos cortes de orçamento durante o governo Bolsonaro, a educação brasileira é um dos setores mais afetados desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Diante desse cenário, o movimento estudantil cumpriu um papel fundamental na organização e mobilização da juventude para pautar o debate público e resistir ao sucateamento das instituições públicas de ensino.

Nesta entrevista, nós conversamos sobre o movimento estudantil universitário na Bahia com Larice Ribeiro, vice-presidente da União dos Estudantes da Bahia (UEB), militante do Levante Popular da Juventude e coordenadora-geral do DCE da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Nós falamos sobre como os cortes nas verbas das universidades públicas atingem os estudantes, como as cotas mudaram a cara da universidade e também do movimento estudantil e qual o papel da resistência desse grupo para toda a sociedade.

Brasil de Fato Bahia: Qual o papel do movimento estudantil atualmente, nesse cenário de desmonte de políticas públicas e desfinanciamento da educação?
Larice Ribeiro: Bem, esse ano os protestos e as mobilizações no dia 11 de agosto, Dia do Estudante, aconteceram nas ruas e dentro das universidades e ganharam um tom de luta com um pouco mais de profundidade e de preocupação, cuidado em defesa da democracia. A UNE, junto à FENED e diversas universidades, DCEs, Centros e Diretórios Acadêmicos, executivas de cursos se reuniram, assinaram, construíram e leram a Carta aos Brasileiros e às Brasileiras em Defesa do Estado Democrático de Direito, porque além das políticas públicas estarem sendo desmontadas, que é um projeto do neoliberalismo, de destruição do Estado, das coisas públicas, a gente está vivendo em um cenário de ataques constantes à democracia, com esse perigo de retornarmos a um período muito nebuloso da nossa história que foi a ditadura.

Então, por isso, para além da defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, o movimento estudantil também se coloca nas ruas em defesa do estado democrático de direito e da autonomia das universidades. Porque é dentro da democracia que a gente tem condições de realizar nossas eleições internas, de realizar nossas pesquisas, ensino e extensão, independente daquilo que seja ordenado ou que seja vontade do governo. Contudo, a gente também vive esse momento de desfinanciamento da educação, a gente vê os desmontes, a gente vê as verbas da educação sendo destinadas para outros locais, tantas corrupções dentro do MEC, e a gente vê que as pessoas mais impactadas são de fato os e as estudantes que têm a sua origem ali na classe trabalhadora.
 


Larice é vice-presidenta da União dos Estudantes da Bahia, entidade que representa os estudantes universitários do estado / UEB

Qual tem sido o impacto desses constantes cortes e bloqueios de verbas das universidades para os estudantes? Tá mais difícil a permanência na universidade?
O impacto desses cortes constantes, desses contingenciamentos pôde ser medido, inclusive, durante a pandemia, quando as universidades não tiveram recursos para se manter, para manter o funcionamento. Houve ameaça de fechamento de diversas universidades, que não conseguiram, ou conseguiram depois de muito custo, uma política interna de permanência dos estudantes, por meio de financiamento de equipamentos de internet, para que pudessem estudar de forma remota. Mas também nesse período de retorno às atividades presenciais, a gente vê cada vez mais laboratórios sem recursos para pesquisa, a gente vê os restaurantes universitários com uma baixa capacidade de atendimento, e essas são políticas importantes para a permanência dos estudantes dentro da universidade. O que é fundamental para que a universidade exista, para que ela funcione, sendo de fato democrática e acessível.

Nesse sentido, uma política de permanência e de assistência estudantil dentro da universidade é indispensável. Até mesmo os órgãos de financiamento da iniciação científica, de iniciação à docência, durante esse período de pandemia sofreram cortes e isso causou um atraso em bolsas, que a gente sabe que, a priori, não tem esse caráter de permanência, de incentivo, mas é o que acaba sustentando os estudantes dentro da universidade. Que é o local onde a gente está investindo nosso tempo, estudando. E, de fato, ser estudante é uma profissão. Assim, a bolsa, o recurso não têm um caráter de solidariedade, mas sim de remuneração justa pelos trabalhos que estão sendo feitos dentro da pesquisa, da extensão, da iniciação científica, que é um direito dos estudantes para conseguir permanecer dentro da universidade.

Na esteira desses cortes de verbas, as universidades públicas no país têm sofrido diversos ataques à sua imagem, muitas vezes vindos do próprio MEC e Governo Federal. Uma verdadeira campanha para desacreditar a universidade como espaço educacional. Na sua avaliação, falta à universidade pública estar mais próxima da sociedade em geral para demonstrar melhor qual é seu papel educacional e científico no Brasil?
Desde o princípio do governo Bolsonaro, na verdade, desde as eleições, a gente já conseguia prever mais ou menos o tom de como seria esse governo, de ataques à democracia, às coisas públicas, às empresas públicas de diversos setores que são essenciais para o desenvolvimento da nossa sociedade, assim como o SUS, a Petrobras, que são geridos pelo estado. Assim como eles, a universidade também, que é pública, que é gratuita, tem sua imagem cada vez mais atacada, numa tentativa de demonstrar que as universidades são defasadas, que precisam de intervenção, que não têm capacidade de pesquisa, que não têm funcionalidade, ou que nela acontecem práticas imorais… A universidade foi alvo de inúmeras fake news. E, sim, é uma necessidade que a universidade seja desmistificada. Por isso que a gente luta para que cada vez mais esse seja um espaço acessível, seja um espaço aberto, seja um espaço democrático, integrado à sociedade. Também é uma luta do movimento estudantil para que as ações de extensão estejam cada vez mais enraizadas, cumprindo seu papel de levar a universidade para dentro do dia a dia da sociedade. Então, a gente tem ainda essa missão de fazer a universidade se tornar popular, de fazer a universidade pintada de povo. 


O Levante Popular da Juventude é um dos movimentos sociais que, dentro e fora das universidades, têm contribuído na organização dos jovens no estado / Levante Popular da Juventude

A lei de cotas completa 10 anos esse ano e segue sob fortes ataques desde antes de sua criação até hoje. Como a UEB avalia esse 10 anos de cotas nas universidades públicas do estado?
A lei de cotas é um resultado de muita luta dos movimentos negro, sociais, estudantil. Então, desde 2012, o ano de sua promulgação, nesses dez anos de trajetória, a gente tem sofrido diversos ataques, tanto à aplicação da lei, com tentativa de impendimento, com tentativa de desqualificação desse processo, de políticas afirmativas, como também nas tentativas de fraude, que são também uma forma de invalidar o público e afastar o público para o qual essa lei foi criada. Então, dentro das universidades hoje a gente consegue visualizar uma mudança substancial do público. A gente consegue ver isso refletido, inclusive, no movimento estudantil. Hoje a UEB, principalmente nessa gestão, nesse ano tão simbólico, dos 10 anos de cotas, a gente tem na presidência, vice-presidência e secretaria-geral três pessoas negras, oriundas da classe trabalhadora, de universidade estadual. E a gente consegue ver os estudantes hoje, a gente tem uma universidade mais enegrecida.

Mas isso não quer dizer que isso basta por si só. A Lei de Cotas deve vir associada a essas outras políticas de ações afirmativas, que incluem as políticas de assistência e permanência estudantil. Mas a gente consegue ver um saldo muito positivo de acesso à universidade, ao ensino superior, dentro de nosso estado, um estado que tem um contingente enorme de pessoas negras. Essa é um política acertada, uma política que a gente precisa lutar para defender ativamente. Não apenas dizendo que as cotas são boas, que são legais, mas defendendo ativamente, inclusive com mecanismos de combate a fraudes, como as bancas de heteroidentificação. Dentro das universidades, são debates que a gente faz constantemente, que a gente reforça, que a gente luta constantemente, inclusive, para a implementação nas universidades do estado que ainda não têm. Além de manter essa lei efetiva, a gente quer a ampliação dessa lei, não só dentro das universidades, mas também em concursos. A gente quer a ampliação dessas leis, a gente defende as cotas e sabe o quanto elas são importantes para o acesso das pessoas negras à universidade.


A UNE é a entidade que representa os estudantes universitários no país e tem encampado lutas contra os cortes na educação e em defesa da Lei de Cotas / Levante Popular da Juventude

Existe um senso comum no Brasil de que os estudantes universitários estão cada vez mais despolitizados. Você considera que, na prática, é isso mesmo?
Bem, esse discurso do senso comum de que as universidades estão despolitizadas, ele acompanha e tem como alvo o público que está dentro das universidades, nessa faixa etária dos 18 aos 24 anos, que são as juventudes. Historicamente, a gente escuta muito esse discurso de que os jovens não quer nada com a vida, não sabe o que quer fazer, que é uma fase de confusão, de rebeldia… Mas, dentro das universidades, os estudantes têm suas formas próprias de se organizarem politicamente. Ainda que não se denominem como coletivos políticos, mas, de certa forma, estão ali dentro debatendo situações, de acordo com as pessoas que estão presentes ali. Quando se organizam em coletivos de mulheres, LGBTs, de negros e negras, quando se organizam nos centros acadêmicos, em defesa do restaurante universitário, às vezes nem se organizam nas entidades de base, nas entidades gerais, mas estão ali reivindicando seus direitos, lutando, se organizando. Então, na prática, a gente acredita que é um desafio do movimento estudantil reunir e fortalecer, enraizar suas bases nos centros e diretórios acadêmicos, nos DCEs, e trazer de fato esse debate político, conscientemente político, inclusive político partidário.

Desde 2013 a gente vem sofrendo com essa demonização da política partidária, de afastamento, do “abaixo às bandeiras”. Hoje, essa dificuldade é muito colocada também pelo caráter desse governo, esse caráter fascista, de demonizar e criminalizar as organizações de esquerda. Então, ao passo que a gente tem esse desafio, a gente tem essa mesma potencialidade de crescimento e de politização. Nem tudo tá perdido, principalmente nesse ano de eleições e que muitos estudantes querem se organizar e fazer alguma coisa pra mudar a realidade, querem fazer alguma coisa pra não permitir que o governo Bolsonaro continue atacando as universidades, contingenciando os investimentos, os financiamentos das universidades, para pesquisa, extensão… Tem essa compreensão de que muitos querem lutar, querem defender, querem fazer algo, mas não sabem muito por onde. Então, tem essa potencialidade acompanhada desse desafio.

Edição: Lorena Carneiro