Bahia

Agosto Dourado

Aleitamento materno também é questão de saúde pública, defende Daiana Almeida

A ativista pela amamentação aponta os benefícios do aleitamento materno e as disputas políticas em torno do tema

Brasil de Fato | Lençóis (BA) |
Os motivos para o desmame precoce são vários, mas em comum, trazem a falta de apoio de outros atores sociais - Arquivo pessoal

Desde 1992, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu agosto como o mês de incentivo e conscientização sobre a importância de amamentar em todo o mundo. De acordo com a própria OMS, os bebês devem ser amamentados exclusivamente com leite materno até os seis meses de vida, e é muito bom para a saúde da mãe e de seu filho que o leite materno componha a alimentação da criança até pelo menos os dois anos de idade. Infelizmente, no Brasil e no mundo, os índices de amamentação ainda são muito baixos. Nesta entrevista, conversamos com Daiana Almeida sobre os motivos desses índices tão baixos e a importância de toda a sociedade se envolver no incentivo à amamentação e suporte da mãe e bebê. Daiana é psicóloga de formação, consultora e ativista pela amamentação, feminista e mãe de Lunna, de sete anos.

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Brasil de Fato Bahia: Daiana, por que a amamentação é tão importante na relação entre mãe e bebê?

Daiana Almeida: O leite materno é um alimento vivo. A “receita” dele muda a cada mamada. Ele tem uma composição diferente dependendo se é dia ou noite; se o bebê está saudável ou doente; se é um recém-nascido ou uma criança mais velha... O nosso leite tem uma série de componentes que não são encontrados nas fórmulas lácteas, como enzimas e fatores de crescimento que ajudam no amadurecimento do organismo do bebê, que nasce tão imaturo. Tem hormônios que ajudam o bebê a lidar com a dor; ajuda a regular o sono, a regular o peso, a se vincular; tem substâncias que são anti-inflamatórias, que previnem alergias, que são antimocrobianas... Por causa da sua composição, o leite é alimento de fácil digestão, absorção, metabolismo pelo corpo do bebê e por isso tende a amenizar as cólicas, que é uma grande preocupação dos cuidadores. Amamentar reduz o risco de morte súbita, uma importância que a gente não pode desconsiderar. Ajuda a desenvolver todo o rosto do bebê, a arcada dentária, a mandíbula. Além disso, amamentar no peito reduz o risco de desnutrição, diarreia, problemas respiratórios, otites, má oclusão dental, risco de ter inflamação no intestino, doença celíaca, diabete, hipertensão, problemas de colesterol, tudo isso tem um risco reduzido quando o bebê é amamentado com nosso leite em detrimento das fórmulas lácteas.

Para quem amamenta, ajuda muito na recuperação pós-parto, com a liberação de ocitocina, que ajuda o útero a continuar a contrair, a reduzir sangramento. Reduz o risco de câncer de mama e de ovário; o risco de fratura por osteoporose; o risco de diabetes, depressão, infarto e obesidade. Não é pouca coisa! E esse impacto na saúde de mãe e bebê tem influência direta no sistema de saúde do país. Então, o aleitamento materno tem um impacto social imenso. Além de reduzir a pressão sobre o sistema de saúde, tem uma importância na proteção ao meio ambiente também, uma coisa que não é tão do senso comum. A fabricação de fórmulas lácteas, que são o substituto do leite materno, implica na criação de vacas, que precisa de pasto; para o pasto existir, vai precisar de desmatamento. Sem contar nos fertilizantes, agrotóxicos e o próprio processo de fabricação que utiliza recursos naturais. Além da geração dos resíduos das latas, papel, tinta… E o custo de compra, né? O leite é caro, e muitas vezes não vem sozinho. Pensando em famílias vulneráveis, o custo de manter um aleitamento artificial é muito alto e aumenta ainda mais a desigualdade econômica que a gente vive. 


A amamentação traz benefícios para a saúde do bebê e da mãe, além de ter um importante impacto social. / Noeh/Reprodução

Ainda assim, uma pesquisa do Ministério da Saúde aponta que o índice de amamentação exclusiva até os 6 meses é de apenas 45,7%. Por que os índices de amamentação são tão baixos no Brasil?

Infelizmente não é só no Brasil. As taxas de amamentação exclusiva estão abaixo do desejável em muitos países do mundo. Falando do Brasil, os motivos para o desmame precoce são vários, mas sempre com uma coisa em comum: falta de apoio dos outros atores sociais. Toda a responsabilidade pela amamentação é imputada à mãe. Afinal, “amamentar é um ato de amor; ser mãe é padecer no paraíso”. E assim vai se convencendo as mulheres a fazerem o trabalho reprodutivo exaustivo que é gestar, parir e amamentar, sem o suporte mínimo necessário para ter algum conforto, pra manter a sua dignidade, a sua vida. O uso de bicos artificiais, mamadeira e chupeta, também são responsáveis por desmame precoce. O bebê que usa mamadeira muda a forma de sucção, passa a não conseguir tirar leite do peito. Também temos muito desmame porque as mulheres acham que não estão produzindo suficiente, que o bebê está com fome, mas isso pode estar relacionado ao desconhecimento sobre como funciona o corpo - o que deveria ser orientado por profissionais. Sem essas informações, as mulheres acabam desmamando por achar que não está tendo uma produção adequada.

E um dos fatores importantíssimos pra não atingir esses índices de amamentação exclusiva até os seis meses é que a grande maioria das mulheres precisam voltar ao trabalho antes dos seis meses. Mesmo as que têm regulamentação trabalhista pela CLT só têm 4 meses de licença. Imagine as autônomas, que não conseguem muitas vezes se planejar para se afastar muito tempo do trabalho. Então, aumentar os índices de aleitamento materno exclusivo passa por políticas públicas que atuem principalmente na manutenção da remuneração para a sobrevivência digna das mulheres enquanto amamentam, pela formação de profissionais que saibam manejar o processo desde o pré-natal até o pós-parto e pela fiscalização do atendimento das regulamentações que já existem para a comercialização de fórmulas lácteas indiscriminadamente e apetrechos que atrapalham a amamentação. É uma questão complexa e passa pela necessidade de uma priorização disso no país, que infelizmente a gente não tem visto melhorar.

Aumentar os índices de aleitamento materno exclusivo passa por políticas públicas que atuem principalmente na manutenção da remuneração para a sobrevivência digna das mulheres enquanto amamentam.

Daiana, a gente sabe, por exemplo, que a Nestlé tem patrocinado os Congressos de Pediatria nos últimos anos no Brasil, patrocinando inclusive um manual sobre alimentação para crianças e adolescentes. Pode falar um pouco sobre o papel da indústria de alimentos nesses índices baixos de amamentação?

Essa relação da Sociedade Brasileira de Pediatria com uma indústria que atua há décadas ativamente em favor do desmame e do consumo de alimentos processados pelas crianças é uma vergonha. Sim, a SBP tem inúmeros congressos, atualizações, eventos patrocinados pela Nestlé e, como você falou, lançou também com apoio da Nestlé um manual com orientações para alimentação de crianças e adolescentes. O que você acha que tem nesse manual? Descasque mais e desembale menos? Óbvio que não! E isso é muito revoltante. Até a época das nossas mães, não se tinha ainda tantas pesquisas mostrando os benefícios do leite humano, e os alimentos industrializados eram apresentados agressivamente pela indústria como melhores, mais fortes, mais limpos. Depois que se começou a ser provado pelas evidências científicas que não há comparação entre a qualidade do leite materno e do industrializado, veio uma regulamentação em relação ao marketing direto. A partir daí, a indústria mudou a tática e hoje trabalham dessa forma, influenciando os profissionais a prescreverem fórmulas, na grande maioria das vezes, desnecessárias. E quando necessárias, ainda assim, por um manejo inadequado da amamentação. A indústria tem tecnologia para casos em que é necessário usar fórmulas, para crianças que tem alguma alergia, que tem alguma demanda, mas, infelizmente, é uma tecnologia que não é utilizada para o bem-estar da sociedade. É uma tecnologia que visa puramente o lucro e acaba prejudicando, no geral, muito mais do que ajudando.

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Como médicos (obstetras e pediatras) e sociedade em geral podem fazer para ajudar a melhorar os índices de amamentação?

Eu acho que é algo que precisa vir da raiz, de uma mudança no sistema no sentido de priorizar mesmo mulheres e crianças na sociedade. Sem mulheres fazendo o trabalho reprodutivo de gerar e criar crianças, não temos futuro. Com essa priorização, viria licença parental remunerada, viria capacitação dos profissionais para dar esse suporte, principalmente do SUS e daqueles que ainda não estão vendidos à indústria e realmente honram o seu propósito de cuidar das mulheres e crianças. E tem muitos, muitos profissionais assim, e que precisam de atualização, precisam de ferramentas para atuar da melhor forma. Precisam de valorização, capacitação, recursos físicos de trabalho para poder atuar de uma forma consistente. E precisamos mudar a cultura. A gente precisa ver a amamentação como o ato fundamental que beneficia a todos nós e olhar para quem amamenta como alguém que precisa de acesso a direitos e não a favores. Então, eu creio que a gente ainda vai chegar nisso, trabalhamos a passo de formiguinha. Pode não ser para amanhã, mas ainda vamos atingir isso.

Edição: Lorena Carneiro