Bahia

DIREITO À TERRA

Comunidades de fundo e fecho de pasto enfrentam desafios para garantir seus territórios

"É energia limpa com método sujo, é crescimento com desigualdade", afirma pesquisadora sobre os conflitos atuais

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
"São comunidades tradicionais e se caracterizam principalmente pelo modo de vida que vai entrelaçar, nos seus territórios, o uso de lotes individuais e lotes de uso comum", diz pesquisadora. - IRPAA

A Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA) aprovou o Projeto de Lei 22.018/2016 na terça-feira (16). Tal projeto tem o objetivo de alterar a Lei 12.910/2013, que estabelece a regularização fundiária de terras públicas estaduais, rurais e devolutas, ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos e por fundos e fechos de pastos. O novo PL retira da lei vigente o prazo para as associações protocolarem os pedidos de certificação, reconhecimento e regularização fundiária nos órgãos competentes. O próximo passo é a votação no plenário da Assembleia Legislativa.

Gilca Garcia de Oliveira é professora na Universidade Federal da Bahia e pesquisadora nos grupos Geopode e GeografAR. Este último realizou, em 2020, um mapeamento das comunidades de fundo e fecho de pasto no estado a pedido da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI). Gilca diz que os principais desafios das comunidades atualmente são os conflitos pelos seus territórios. "Elas ocupam esses territórios historicamente, a grande maioria com mais de 200 anos de história, e a maioria desses territórios está localizada em terras públicas, que já deviam ter sido discriminadas e encaminhadas para regularização em nome das comunidades. O próprio Estado reconhece a existência dessas comunidades desde a Constituição de 1988, mas não encaminha os processos de regularização fundiária de forma adequada. Assim, mesmo ocupando e produzindo nesses territórios, as comunidades não têm segurança quanto à posse dos mesmos", explica a pesquisadora.

Em momentos nos quais surgem elementos que valorizem a terra, a exemplo de minerais a serem explorados e corredores de vento, os conflitos se intensificam, de acordo com Gilca. "Esses conflitos no campo têm sido cada vez mais intensos, duradouros e violentos. Na atualidade, os principais conflitos que essas comunidades enfrentam no campo baiano estão centrados com as empresas de produção de energia eólica e solar e com as mineradoras. Mas o histórico conflito com os grileiros se mantém e se intensificam a medida em que as terras são valorizadas e disputadas. As comunidades buscam se organizar também, principalmente na articulação estadual que tem importante papel de formação, de luta pelos direitos, mas que esbarram no extenso território baiano e no grande número de comunidades espalhadas pela Caatinga e Cerrado", pontua a professora.

No mapeamento feito pelo Geografar, foram identificadas cerca de 600 associações de fundo e fecho de pasto. Cada associação pode reunir mais de uma comunidade e Gilca reforça que existem mais do que as que foram identificadas. As características são diversas, mas a pesquisadora explica o que configura uma comunidade de fundo e fecho de pasto: "São comunidades tradicionais e se caracterizam principalmente pelo modo de vida que vai entrelaçar, nos seus territórios, o uso de lotes individuais e lotes de uso comum. Cada comunidade tem a sua especificidade no arranjo do uso do território, mas, de forma bastante resumida, as comunidades de fundo de pasto estariam situadas na Caatinga, as casas são mais espaçadas, e a área de uso comum é usada principalmente para a criação de animais de pequeno porte, a exemplo do bode. As comunidades de fecho já estão situadas no Cerrado. Os lotes de uso comum são espaços de criatório de animais de grande porte, como o gado, e extrativismo. Esses lotes de uso comum estão localizados em áreas mais distantes das comunidades".

Sobre a lei ainda vigente, e que pode ser alterada com a aprovação do PL 22.018/213, Gilca ressalta o que significou na prática para estas comunidades até então. "A lei criou um marco temporal para o processo de certificação. As comunidades apenas poderiam se reconhecer enquanto comunidades de fundo e fecho de pasto até 31 de dezembro de 2018. Portanto, tempo esgotado. Há uma ação de inconstitucionalidade dessa lei impetrada pela articulação das comunidades de fundo e fecho de pasto que se encontra no Supremo. O Estado, que deveria cumprir esse papel com celeridade para garantir a segurança das comunidades, atua de forma lenta", observa Gilca.

A lentidão não acontece, contudo, quando surge interesse econômico, como no caso das empresas energias eólicas, como observa a pesquisadora. "O estado da Bahia publicou uma instrução normativa que visa agilizar esses processos, não como resultado das demandas históricas das comunidades, mas pela demanda dos empreendimentos. O estado articula com o capital viabilizando uma estrutura predatória através de mecanismos legais para implantação de parques eólicos, solares, mineradoras que levam a expropriação de diversas famílias dos seus territórios tradicionais. É energia limpa com método sujo, é crescimento com desigualdade. Quando é que vamos nos afetar com tudo isso?", reflete Gilca.

O mapeamento completo realizado pelo grupo de pesquisa GeografAR pode ser acessado no site: Grupo de Pesquisa Geografar | Instituto de Geociências da UFBA

Edição: Jamile Araújo