Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Cantora Glau Barros coloca em visibilidade a mulher no samba gaúcho

Cantora e atriz com décadas de carreira fala de seu primeiro disco e da pesquisa Sambaobá – A Raiz Feminina do Samba

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A primeira coisa que eu ouvi na vida dentro do meu seio familiar foi o samba, eu venho do carnaval", conta a intérprete e atriz - Foto: André Luís Ferreira

Com 30 anos de carreira na música e 20 nas artes cênicas, Glau Barros é uma importante intérprete da atual geração de artistas gaúchos. Ela marcou sua presença no samba do Rio Grande do Sul com seu álbum de estreia, “Brasil Quilombo”, lançado em junho de 2019, no Theatro São Pedro. Neste trabalho, interpreta sambas de compositoras e compositores gaúchos, além de releituras de consagradas canções do gênero. O álbum conquistou o Prêmio Açorianos 2020 de DVD do Ano e o prêmio de Revelação, além de duas indicações: melhor intérprete de MPB e melhor espetáculo.

Nesta quinta-feira (16), data que marca 107 anos do nascimento de Lupicinio Rodrigues, a cantora e atriz Glau Barros, ao lado do violonista Edu Moreira, presta homenagem a este que é um dos nomes mais celebrados da música popular brasileira, com show no Café Fon Fon. A transmissão inicia às 20h, pelo Instagram e Facebook do Café Fon Fon e pelo canal do YouTube da cantora.

Além de marcar presença nos palcos, Glau Barros mostrou seu lado pesquisadora com o projeto “Sambaobá – A Raiz Feminina do Samba”. Com o objetivo de descobrir a raiz feminina do samba no Sul, sua investigação tem por finalidade visibilizar e reconhecer as mulheres sambistas de diferentes regiões estado, como forma de fortalecer a narrativa feminina e o protagonismo dessas artistas. Em cinco lives, disponíveis no seu canal no YouYube, ela apresentou o trabalho de cantoras, intérpretes e instrumentistas das cidades de Gravataí, Pelotas, Uruguaiana, São Borja e Rio Grande.

O Rio Grande do Sul é um celeiro de grandes sambistas, sendo alguns nacionalmente conhecidos, recorda Glau Barros. Porém, há pouco espaço midiático para o estilo musical e seus artistas. “O nosso samba no geral tem essa invisibilização, e a mulher no samba ainda mais”, afirma.

Para falar sobre seu projeto “Sambaobá – A Raiz Feminina do Samba”, do seu disco “Brasil Quilombo”, bem como da importância da arte e de projetos que deem visibilidade ao trabalho de mulheres negras no estado, Glau conversou com o Brasil de Fato RS.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato RS - Em seu projeto “Sambaobá – A Raiz Feminina do Samba", você pesquisou uma face pouco conhecida da música no RS para o público em geral, a presença de mulheres sambistas pelo estado. Quais as principais revelações este trabalho apresentou?

Glau Barros - O Sambaobá me apresentou algumas mulheres compositoras e instrumentistas que eu não conhecia do Interior, porque a cena da Capital, da Região Metropolitana, para mim é muito conhecida. E foi uma grata surpresa, porque na verdade eu fiz uma entrevista com algumas dos contatos que me enviaram.

Por exemplo Pelotas, eu tive o contato de mais cinco ou seis artistas sambistas da cidade. Rio Grande também, tinha outras mulheres. Mas na verdade eu precisei fazer uma escolha para fazer as entrevistas. Então ficaram ainda outras mulheres com as quais eu não tive contato, mas que são atuantes neste cenário do samba. A ideia é no futuro fazer uma segunda edição, enfim, para trazer esses outros nomes pro projeto, e também para divulgar pro grande público.

BdFRS - O projeto resultou em cinco lives. Que artistas foram apresentadas e quais os temas debatidos?

Glau - As artistas que foram entrevistadas foram Daniela Brizolara e Dena Vargas de Pelotas, Gilmara Colares de Rio Grande, Patrícia de Guian de Uruguaiana, Drika Carvalho de Gravataí, e Luciara Batista de Canoas. Abordamos o processo criativo de cada uma delas, o cenário do samba nas cidades onde elas moram, principalmente o cenário feminino do samba, os projetos dos quais elas trabalham e também os projetos futuros; como elas conseguiram se manter em atividade neste período de pandemia e também a trajetória de cada uma delas, trajetória de vida, artística; e como elas iniciaram a sua carreira como artista e como o samba entrou na vida delas. 


"Três conceitos formam o Sambaobá e são a raiz desse projeto - o sagrado que vem no samba, no baobá e na orixá, o sagrado, a feminilidade, a força" / Foto: Alisson Batista

BdFRS - Explica para nós o significado do nome "Sambaobá" e o por que de ter sido escolhido para representar tua pesquisa.

Glau - O Sambaobá é formado por três palavras, contém a palavra samba, a palavra baobá, e obá. A articulação dessas três palavras dão a dimensão do nome do projeto.

Samba porque a gente tá pesquisando e falando sobre esse gênero, que é um gênero musical brasileiro, e que tem a sua origem nas comunidades afro-brasileiras urbanas, que traz toda a luta e resistência nesse ritmo.

O baobá enquanto árvore africana, que é uma simbologia africana e que então é um dos radicais dessa palavra, é uma árvore que no Candomblé é considerada sagrada e nunca deve ser cortada ou arrancada, assim como as nossas culturas afrodiaspóricas.

E traz a palavra obá, que é uma orixá africana e um de seus significados é dona da roda. Tudo relacionado a obá é envolto em clima de mistérios, ela é cultuada como uma grande deusa protetora do poder feminino e também é representante suprema da ancestralidade feminina.

Essas três palavras, esses três conceitos formam o Sambaobá e são a raiz desse projeto - o sagrado que vem no samba, no baobá e na orixá, o sagrado, a feminilidade, a força. 

BdFRS - O senso comum relaciona o samba mais ao centro do país. Porém o RS tem uma forte presença nacional nesta expressão artística. Neste sentido, as mulheres são ainda mais invisibilizadas? Por que?

Glau - Aqui no RS o samba é bastante forte, apesar da mídia, apesar de termos pouco espaço para publicizar as nossas obras, os nossos artistas, nossos sambistas. A gente vê uma abertura muito maior na mídia digamos tradicional pro tradicionalismo, pro rock gaúcho, mas pro samba ainda é pouco esse espaço. E a gente vê bastante isso na cultura do carnaval, por exemplo, que hoje, claro, enfrenta diversas dificuldades, mas vem de um tempo sendo gradativamente invisibilizado pela mídia local. Nos últimos anos os desfiles das escolas de samba que antes tinham um lugar na grade de programação local, hoje em dia é quase inexistente.

Diante disso, o nosso samba no geral tem essa invisibilização, e a mulher no samba ainda mais. Por ser um gênero onde majoritariamente os homens são protagonistas, as mulheres consequentemente ficam invisibilizadas, são chamadas muitas vezes pra fazer uma participação, e ela está presente em diversos setores desse gênero. A gente está acostumado a ver as mulheres como as sambistas, as passistas, em outras áreas, mas não compondo. Também vemos bastante como intérpretes, mas na linha de frente como instrumentistas, como compositoras é mais raro, e não é porque elas não existam.

Na verdade há ainda uma resistência tanto do público em consumir essas artistas, quanto desses grupos majoritariamente masculinos abrirem um espaço. Os próprios espaços do samba muitas vezes não chamam mulheres. Geralmente se vê muitos grupos de pagode masculino, muitos homens trabalhando plenamente nessa área, e as mulheres tentando cavar um espaço nessa cena. 

Também falta esse espaço na mídia. Quando a gente conseguir colocar essas mulheres num espaço de destaque, tudo vai mudar, a cena vai ficar mais diversa, mais rica, e também vai abrir oportunidade pra essas artistas mostrarem seu trabalho.

BdFRS - O que motivou você a realizar este projeto?

Glau - A motivação para realizar esse projeto já vem de algum tempo, em 2007, 2008, quando eu conheci a obra da Zilá Machado, e também de algumas outras compositoras como Ilza Rocha, que também é aqui de Porto Alegre, e eu coloquei essas mulheres no repertório do espetáculo que eu fazia na época. Eu vi que havia muito pouco registro de mulheres compositoras, mulheres instrumentistas, protagonistas da sua obra, havia pouco material para se pesquisar no que diz respeito a vídeos, músicas, em sites, e da história delas mesmo.

A partir dali eu procurei estabelecer um elo com as mulheres que estavam próximas a mim, que foi o caso que eu venho há algum tempo trazendo no meu repertório a obra da Delma Gonçalves, da Pâmela Mara, da Guaíra Soares, e de outras compositoras. E também agregando nos meus shows instrumentistas mulheres, assim como Alexsandra Amaral, Jordana Enriquez, por aí vai, e isso me inquietou no sentido de que eu precisava contribuir para que se conhecesse outras mulheres neste cenário.

Então eu já tinha essa ideia do projeto há algum tempo, mas pela demanda de trabalho não tinha conseguido colocá-lo em prática ainda. E com a pandemia, que a gente acabou se voltando também para outras atividades, atividades não presenciais, eu pude então colocar esse projeto no papel, inscrever no edital da Fundação Marcopolo, e tive a felicidade de ele ter sido contemplado.

E o que no início seria um projeto onde a minha ideia era, através dos shows que eu fazia no interior, me conectar a estas mulheres, ir conhecê-las, conversar presencialmente com elas, acabou que eu consegui fazer o projeto não nestes moldes, mas virtualmente. Com a ideia de no futuro poder ir até essas cidades conhecê-las, conhecer a cena local onde elas se encontram, e também no futuro trazê-las até aqui na Capital pra gente fazer esse intercâmbio, compartilhar a nossa arte, compartilhar o nosso trabalho.


"Quando a gente conseguir colocar essas mulheres num espaço de destaque, tudo vai mudar" / Foto: Val Pacheco

BdFRS - Você tem 30 anos de carreira musical e 20 nas artes cênicas. Conta para nós a sua origem e o sentido que você encontrou nesta caminhada artística.

Glau - Eu sou de Gravataí, e tenho na minha família pessoas ligadas à música, à arte, também ligadas às religiões de matriz africana. Nesses 30 anos de carreira e 20 anos nas artes cênicas, eu pude estar em contato com muitos artistas talentosos, muitos profissionais generosos que me possibilitaram potencializar a minha arte.

Eu nasci em Porto Alegre, mas sempre vivi e moro até hoje em Gravataí, e daqui eu desenvolvo a minha carreira. Fiz diversas parcerias, iniciei nos anos 90 cantando com uma banda de MPB e Pop Rock, onde eu fui a vocalista, e também levei a minha bagagem cultural, as minhas referências para esse trabalho.

Depois em 2000, iniciei nas artes cênicas e fiz parte, faço parte, durante muito tempo, do Grupo Caixa Preta de Teatro, que é o grupo onde eu mais desenvolvi trabalhos de atuação no teatro. Um grupo formado por atores, artistas, equipe técnica, produtores negros e negras, onde eu pude exercer plenamente a minha atuação em diversos papéis, sem papéis estereotipados. Fui diversas personagens, fui Antígona, Hamlet, Ofélia, já fiz Clitminestra das tragédias gregas, enfim... um trabalho bastante potente e que me possibilitou transitar por diversos personagens que em outros grupos talvez eu não tivesse oportunidade de fazer.

Na música eu canto de tudo, canto MPB, canto rock, blues, jazz, mas nos últimos anos me dediquei ao samba que é onde está minha raiz, a minha raiz do que eu ouvia. A primeira coisa que eu ouvi na vida dentro do meu seio familiar foi o samba, eu venho do carnaval. Na minha cidade tem um clube social negro onde eu convivi muito, minha família foi uma das fundadoras e hoje sou diretora cultural desse clube.

Então toda a minha raiz familiar, a minha raiz negra, minha ancestralidade, se potencializou agora nesses últimos anos na minha carreira, que eu sempre trouxe junto, mas se tornou muito mais potente no meu trabalho autoral dos últimos anos como cantora e também nas minhas atuações tanto no Grupo Caixa Preta como fora dele. Então a minha trajetória, minha caminhada artística tomou outro sentido quando eu trouxe pra cena todos esses elementos que me constituem.

BdFRS - Em 2019 você lançou o primeiro registro fonográfico de sua carreira, com o título "Brasil Quilombo". Fale para nós sobre este disco: o que a levou a escolher as músicas que você interpreta e qual a importância deste trabalho para sua carreira.

Glau - O Brasil Quilombo foi um divisor de águas, vamos dizer assim, na questão de projeção enquanto artista mesmo, porque as pessoas já me conheciam como cantora, como atriz, mas eu estive sempre muito ligada a grupos, não só a grupos no teatro, como na música também. Eu não tinha nenhum trabalho onde eu estivesse sozinha em cena, como protagonista desse trabalho, então o Brasil Quilombo traz uma Glau Barros protagonista daquele trabalho.

A escolha de repertório, na verdade, são sambas que já estavam incorporados no meu repertório de apresentações, do que eu vinha fazendo até aqui de shows, e a prioridade sempre foi dentro de um repertório com sambas clássicos, enfim, foi trazer pra cena os nossos compositores e compositoras sambistas aqui do Sul.


"A arte é uma poderosa ferramenta contra a discriminação racial e diversos outros preconceitos" / Foto: Josemar Afrovulto

Também tive uma preocupação de que esse trabalho traduzisse a minha trajetória enquanto artista, e artista preta, porque eu queria trazer o samba, mas eu também queria trazer canções que me dissessem algo, que fossem narrativas que me completassem enquanto artista, enfim. E também tive uma preocupação de trazer vários estilos dentro desse gênero, que tivesse um colorido de melodias, de harmonias, e eu acho que ele ficou bem diverso nesse sentido.

Eu queria que ele fosse um trabalho diverso, tivesse uma potencialidade nesse sentido, e mais ainda, que tivesse a presença de mulheres. Então tem quatro sambas com composições de mulheres sambistas, e os demais são clássicos e profissionais dos quais eu sou extremamente admiradora e que eu gostaria que estivessem nesse trabalho.

E ele, como eu disse no início, foi um divisor de águas, as pessoas passaram a conhecer a Glau como protagonista da sua carreira, não que eu não fosse, que eu não tivesse, que as pessoas não me conhecessem, enfim. Mas esse trabalho foi realmente o que me deu um destaque, tanto que mesmo com 30 anos de carreira eu recebi um prêmio, o Prêmio Açorianos de artista revelação. Então isso mostra bem que na verdade eu fui revelada por esse trabalho, como uma cantora, enfim, na verdade sou cantora e atriz, mas tive esse destaque com o Brasil Quilombo.

Mas isso também vem um pouco ao encontro do que eu já havia falado nas outras respostas, sobre a invisibilidade da mulher negra, e eu venho aí há 30 anos contribuindo pra cena, não só pra cena do teatro, como também pra cena da música, e recebo um prêmio como revelação, com 30 anos de carreira. Isso explicita bastante essa questão da invisibilidade.

BdFRS - O atual momento do país e do mundo mostra a relevância do combate ao racismo. De que forma a arte pode ajudar nesta luta?

Glau - A arte é uma poderosa ferramenta contra a discriminação racial e diversos outros preconceitos. Quando através da arte se dá visibilidade à cultura afrodiaspórica, valorizando sua importância na construção de nossa identidade como povo, fortalecendo e elevando a autoestima de negros e negras, além de criar oportunidades de trabalho e renda neste setor, todo este movimento contribui de forma categórica para o combate ao racismo.

BdFRS - Você tem novos projetos, artísticos ou de pesquisa, em vista?

Glau - No que diz respeito a projetos, a ideia é realizar três videoclipes de sambas do meu CD Brasil Quilombo. Para isso, aguardo a abertura de editais, pois o custo destes materiais são bastante elevados. Também pretendo realizar a segunda edição do Sambaobá, onde pesquisarei sambistas gaúchas de outras cinco cidades ainda não definidas, mas que em breve pretendo escolhê-las.


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Edição: Katia Marko