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Vírus, Geopolítica e Nova Guerra Fria

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A estratégia dos Estados Unidos infelizmente é a repetição de um receituário do nacionalismo como ideologia política. - Foto: Olivier Douliery/AFP
A Humanidade deve deixar para trás seu passado de nacionalismos e imperialismos

Ganhou repercussão internacional a declaração do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, no último dia 27 de agosto, de que o governo chinês omite informações cruciais para rastrear a origem do coronavírus. A declaração de Biden não foi baseada em análises científicas de entidades respeitadas, mas, inacreditavelmente, a partir de relatórios de agências de inteligência americanas sobre a suposta origem do vírus. Quais foram essas agências? Que método científico foi usado para afirmar que há possibilidade de ter havido uma “fuga laboratorial” de um vírus que supostamente estaria sendo desenvolvido com objetivos militares? Que interesses econômicos, geopolíticos e militares estão por trás dessa acusação, perpetrada num momento de necessidade de maior união entre todos os países para enfrentar a pandemia, garantir vacinas a todas as 7,67 bilhões de pessoas na Terra e combater a fome e a miséria crescentes em escala global?

Uma das características do nacionalismo como ideologia política é a busca de um inimigo externo para combater, coesionando a nação, criando um sentimento de pertencimento pelo medo e pelo instinto de autodefesa. A estratégia dos Estados Unidos infelizmente é uma repetição desse receituário que se fez presente em vários momentos históricos de nacionalismo, xenofobia, militarismo, guerras. Na verdade é apenas uma reação estadunidense em mais um capítulo das transformações globais, com a ascensão da China, a aliança entre China e Rússia, o projeto da “Nova Rota da Seda”, a proposta de um projeto mundial de bem estar social para toda a humanidade e consequente perda da hegemonia unilateral do império estadunidense. Essa hegemonia conquistada depois da queda do muro de Berlin em 1989 e da dissolução da União Soviética em 1991 permitiu a esse país uma presença econômica e geopolítica sem contraponto, exercitando em muitos momentos seu unilateralismo para invadir países, derrubar governos e fazer bloqueios econômicos.

O mundo viveu de 1945 a 1989 sob a Guerra Fria, com a corrida armamentista, a disputa militar em várias regiões do Globo e um estado de permanente tensão; esse período foi sucedido pelo momento de hegemonia capitalista neoliberal nos anos 1990 e início dos anos 2000, mas a partir do início do novo século uma nova arquitetura política se formou no mundo. 

No Brasil e em vários países da América latina, novos governos deixaram de lado o receituário neoliberal de diminuição dos direitos sociais e começaram a promover um processo de inclusão social inédito na história, com presença forte do Estado, autonomia política em relação a todos os países centrais e integração regional. A China se fortaleceu com uma economia forte e sustentável que cresceu em 40 anos a taxas de 9% a 12% ao ano (1980-2020), promovendo a inclusão social de mais de 800 milhões de pessoas que anteriormente estavam em situação de vulnerabilidade social, com certeza dando uma lição de como é possível ter crescimento econômico, soberania nacional, autonomia científica e tecnológica, acabar com a fome e promover uma ascensão social extremamente forte. Foi formado o bloco dos BRICS, com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul que promoveram uma intensificação da cooperação Sul-Sul, defendeu um multilateralismo geopolítico, a paz, as soluções negociadas e apresentou em seu conjunto um crescimento econômico maior que Estados Unidos e Europa.

Todo esse processo deveria ser saudado por gerar mais inclusão, mais felicidade, diminuir a fome e a miséria e colocar no cenário mundial vários e diferentes atores que podem dialogar, negociar e cooperar de forma a promover um crescimento da Humanidade. Entretanto, ocorre uma reação à perda desse poder absoluto de um único Estado nacional sobre os demais, com esse episódio das agências de inteligência americanas que, como dublês de entidades científicas, servem de lastro para acusações aos chineses e exigem uma vistoria em órgãos da China, indo na contramão desse processo de avanço civilizacional. 

Vejamos alguns fatos, diferentes das “fake news” nesse processo. É fato que o estudo da OMS-China sobre a origem do vírus divulgado em março de 2021 indica que é “altamente improvável” que o vírus seja resultado de uma fuga laboratorial. Esse relatório indica que nenhum surto foi detectado em Wuhan antes de 2019 e que a pesquisa da rastreabilidade do vírus deve ter uma abrangência global. É fato também que um laboratório biológico estadunidense, em Fort Detrick, foi fechado por problemas de segurança em agosto de 2019, despois de vários casos de um surto de lesões pulmonares, associado ao uso de cigarros eletrônicos, ainda não explicado ou pesquisado. Se se objetiva descobrir a origem do vírus, por que não investigar esse laboratório e os mais de 800 laboratórios norte-americanos que fazem pesquisas biotecnológicas pelo mundo. 

Essa estratégia foi adotada desde o governo Trump, que popularizou um ataque racista contra os chineses, afirmando que o Covid se trataria de um “vírus chinês”, com duas táticas bem conhecidas no cenário das disputas globais. Uma é a estigmatização de um povo, de sua cultura e sua origem como forma de incitar o ódio e a beligerância, de se ter um inimigo externo e se “desumanizar” o povo que se quer atacar. Outra tática é acusar outro país de estar produzindo armas biológicas e/ou de destruição em massa como justificativa para bloqueios econômicos ou intervenções militares ou até “ataques preventivos”, cujo exemplo mais emblemático foi na segunda guerra dos Estados Unidos contra Iraque, em 2003, quando se afirmou que serviços de inteligência estadunidenses e britânicos tinham absoluta certeza, baseada em evidências, de que Saddam Hussein (antigo aliado dos EUA, e muito financiado e armado por esse mesmo país) de que o Iraque detinha essas armas de destruição em massa. Depois da invasão desastrosa que destruiu o país e incitou o crescimento do Estado Islâmico, nada foi descoberto e os citados “serviços de inteligência” e governantes ocidentais não se desculparam.

O momento atual, entretanto, é diferente do período da primeira Guerra Fria (1945/1989), hoje a China já alcançou os Estados Unidos em tamanho de PIB e o ultrapassou em campos tecnológicos, como na Internet 5G e talvez até em Inteligência Artificial; os EUA por outro lado, embora façam um discurso de confronto com a China, não podem deixar de comercializar com a mesma, e muito de sua economia depende dessa país asiático. Há uma aliança entre Rússia e China que impulsiona a Organização para Cooperação de Xangai (OCX), fundada em 2001 pelos líderes da China, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão e Uzbequistão. Estes países, à exceção de Uzbequistão, tinham sido membros dos Cinco de Xangai, fundada em 1996. Posteriormente, em 2017, a Índia e o Paquistão tornaram-se membros plenos. É uma organização focada em desenvolvimento econômico, impulsionando o maior plano de construção de infraestrutura da História, muito superior ao Plano Marshall que reconstruiu a Europa com o fim da Segunda Guerra Mundial. 

A partir dessa articulação com outros países observadores, como Irã, Turquia e Mongólia, e com países europeus, está em marcha a “Nova rota da Seda”, que investirá mais de 5 trilhões de dólares em planos de infraestrutura. O OCX tem também a finalidade de cooperação para a segurança ‒ em especial, quanto a terrorismo, separatismo e extremismo.

Essa nova configuração geopolítica pode ensejar um resultado mais favorável, e poderemos criar uma atmosfera internacional de maior cooperação para combater a pandemia, mas também reduzir as desigualdades, promover a inclusão social e proceder com uma transição ecológica indispensável para a sobrevivência da espécie humana. Essa transição ecológica, diferente do que muitos defensores da economia baseada na emissão de carbono afirmam, será uma oportunidade de desenvolvimento e crescimento com a construção de uma infraestrutura de geração de energia renovável (solar e eólica), reflorestamento, substituição dos motores de combustão interna, fornecimento de água potável e esgotamento sanitário para todos, substituição dos plásticos comuns atuais por materiais biodegradáveis e muitas outras fronteiras para as quais a tecnologia já apresenta soluções ou indica caminhos.

A Humanidade deve deixar para trás seu passado de nacionalismos e imperialismos, sua história de opressão, escravização e colonialismos; um mundo com mais atores políticos, econômicos e culturais será um mundo multilateral e mais seguro. O medo é um dos sentimentos mais primitivos do ser humano, se desenvolve a partir do territorialismo que herdamos de nossos antepassados comuns com os répteis, e é instrumentalizado para interesses políticos, econômicos e militares principalmente. A recente derrota dos Estados Unidos no Afeganistão, depois de sua mais longa e cara guerra, aponta que o caminho viável para a nossa espécie não está nas invasões ou imposições de governos e costumes estranhos a cada realidade A busca pelo desenvolvimento social e econômico e a exigência da garantia dos Direitos Humanos pelas diplomacias dos países são uma meio mais eficaz e produtivo.
 

Edição: Elen Carvalho