Paraíba

MEMÓRIA

Lembrar: um ato de resistência e de esperança

A memória é uma arma política das mais perigosas para os que governam o medo.

João Pessoa - PB |
O revisionismo histórico que o governo federal proclama coloca em risco a democracia - Reprodução

Por Yago Licarião*

O abril de 2010 foi paradigmático para o processo de transição brasileiro, uma vez que, enfim, o Supremo Tribunal Federal teve em suas mãos a possibilidade de melhor delimitar a amplitude da Lei de Anistia, promulgada em 1979. Assim, o tribunal poderia estabelecer em que grau esta lei seria compatível com a Constituição Federal de 1988 e, em última análise, com o próprio Estado Democrático de Direito.

Os movimentos populares, aliados a instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil – propositora da ADPF nº 153 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, uma ação judicial que pode ser movida para discutir constitucionalidade de normas) –, viram a plena oportunidade de consagrar os anseios de grupos como os Comitês Brasileiros de Anistia e o Movimento Feminino pela Anistia que, em plena vigência do regime militar, já pleiteavam uma anistia ampla, geral e irrestrita.

Mas a história nos conta que o julgamento do STF foi desastroso para as esperanças nutridas pela parcela da sociedade interessada em garantir uma sistemática de justiça de transição, pautada na superação do autoritarismo passado através da titularidade do papel da vítima, com a busca da verdade e construção de uma memória coletiva no centro da atividade democrática. Ao revés disso tudo, a Corte optou pelas transições despóticas da antiguidade, onde esquecimento se traduz em silêncio e a possibilidade de superação é sepultada antes mesmo de nascer.

O direito – com “d” minúsculo – escolhido pela maior parte dos Ministros, certamente, foi aquele concebido como protetor dos privilégios das classes dominantes, uma visão reacionária, conservadora e positivista que é incapaz de enxergar a função e a dimensão social dos instrumentos jurídicos, o que resultou em decisões declaradamente cínicas e descompromissadas. A expressão dessa desfaçatez está exemplificada no voto legalista da Min. Carmen Lúcia, quando afirmara que “nem sempre as leis são justas, embora elas sejam criadas para ser”.

Faço essa contextualização para conectar esses três períodos: a ditadura militar, o julgamento do Supremo Tribunal Federal e o atual momento da pretensa democracia brasileira. Desde 2016, a história de um povo sem história nos atormenta e perpassa nossos olhares incertos, desconfiados, assustados, indiferentes e esquivos. Assistimos um golpe parlamentar contra uma presidenta democraticamente eleita, um golpe sem tanques, e, ainda assim, com os mesmos requintes de crueldade dos que se julgam inalcançáveis à justiça. A política é mesmo uma guerra, como já se disse antes, e não está isenta da violência.

Foi naquele dia que Jair Bolsonaro resumiu toda a vileza de seu ser em uma homenagem, feita de púlpito em pleno Congresso Nacional, a Carlos Alberto Brilhante Ustra, uma das maiores representações dos horrores da ditadura, tendo sido ele o próprio torturador de Dilma Roussef e de tantas outras.

O escárnio, porém, não veio apenas da declaração fascista de Bolsonaro: está, principalmente, no silêncio e nos aplausos, nessas duas faces da ratificação do deboche. Essa atitude condescendente, seja de forma comissiva ou omissiva, é fruto de uma transição malfadada, incompleta e perigosa, que nos coloca nesse eterno retorno à mordaça. Seu anúncio em 2016 foi o precedente de sua consagração em 2018, e não há reza que expie os pecados de quem o avalizou.

Se engana quem não percebe os efeitos da [não] memória no presente. A edição da Lei de Anistia, naqueles idos de 1979, não contou com participação política equivalente, tampouco atendeu aos clamores da sociedade civil organizada. Em uma votação marcada pela desigualdade de forças, com grande presença de senadores biônicos e subrepresentação da oposição, venceu uma lei parcial, que anistiou inteiramente os agentes da repressão e suas torturas em caráter político-institucional, e consolidou de vez o esquecimento que marcaria nossos anos vindouros.

Apesar da existência de órgãos engajados com os pilares da “justiça, memória e verdade”, como a Comissão da Verdade, Comissão de Anistia e Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, criadas após lutas incessantes, as três décadas posteriores ao fim da ditadura legitimaram a neutralização desse período histórico nefasto. Crescemos em bairros, em escolas e em praças que celebram algozes militares, estabelecendo em nossa subjetividade profundas conexões afetivas com esses nomes, impedindo, inconscientemente, a construção de uma imagem real do que essas figuras representaram.

Não é surpresa alguma, portanto, a descoberta do IPEA de que 74% dos brasileiros sequer conhecem a Lei de Anistia. Em março de 2012, quando o Levante Popular da Juventude promoveu “escrachos” frente às residências de torturadores, foi perceptível que grande parcela da população desconhecia o passado daquelas pessoas.

Colhemos agora os efeitos dessa amnésia coletiva. Além da grave consequência de não termos punido agentes que cometeram crimes imprescritíveis contra a humanidade, a desinformação causada por uma transição que vetou o direito à memória nos torna presas fáceis para outros atentados autocráticos, como a desestabilização democrática de que temos sido alvos. A memória é uma arma política das mais perigosas para os que governam o medo, e aqueles que insistem na lembrança são sempre punidos pela máxima rebeldia de não esquecer.

Mais do que nunca, o momento reclama que tenhamos consciência das bases sobre as quais o golpe civil-militar foi possível. Com clareza, é preciso enxergar que os papéis que a imprensa oligárquica, a religiosidade fundamentalista e moralista, o capitalismo industrial, os latifundiários e a classe média desempenharam ora são reprisados para uma audiência atônita. Só que lá, com tanques e balas; cá, com manipulações institucionais.

É preciso ter compreensão sobre as lutas e sofrimentos enfrentados por Carlos Marighella, Iara Iavelberg, Luís Carlos Prestes, Maria Amélia Teles, Paulo Freire e tantas outras e outros resistentes. Suas histórias inspiram nossa caminhada e impõem nosso posicionamento. Como cantou Gonzaguinha, ainda se trata da “memória de um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata”.

Me coloco a pensar em como dormiu o meu povo naqueles idos de março, às vésperas do momento em que tanques de guerra saíram dos filmes para as praças públicas, e o som de balas e pancadas se materializavam a cada instante. Talvez, sonharam com o discurso de Jango sobre as reformas que estavam por vir, ou, quem sabe, sustentavam as esperanças que corriam de uma ilha guerreira um pouco mais ao norte. De manhã, então, a realidade avassaladora tomou seu lugar, destituindo a utopia e enterrando a fé. Eram discursos pomposos e fardas reluzentes que escondiam a destruição que assolava os locais por onde passavam.

Hoje, porém, escutamos novamente o choro das Marias e Clarices, ao perceberem que o bloco que está na rua já não é o dos gritos de resistência. Se é verdade que a história se repete como farsa, as dores, angústias e desesperos retornam como onda: incontrolável e inesperada. Nossos filhos de outrora, ainda mal enterrados, parecem ser assassinados continuamente, como num looping infinito. Talvez esse seja o inferno apregoado pelos cristãos, essa circular miserabilidade que volta e meia nos assalta.

E o céu? Espero que ainda seja essa coragem do encontro combativo e das mãos dadas persistentes.

 

*Advogado e Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB.
 

Edição: Cida Alves