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Coluna

Um novo ciclo na política brasileira e um projeto de desenvolvimento

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Com sucessivos cortes de verbas, pesquisadores têm denunciado a crise nas áreas de ciência e tecnologia do país.
Com sucessivos cortes de verbas, pesquisadores têm denunciado a crise nas áreas de ciência e tecnologia do país. - Arquivo / EBC
Educação, Saúde, Ciência e Tecnologia e Cultura têm centralidade para uma nova industrialização

Desde o dia 8 de março último, tivemos uma série de fatos jurídicos e políticos que fizeram com que entrássemos num novo patamar e período da política brasileira, e colocou o desafio de pensarmos um outro projeto de Nação, atualizado e concernente à Democracia, à Soberania nacional e à Justiça Social, em substituição do projeto necropolítico entreguista e ultraneoliberal dos governos Temer e Bolsonaro. A decisão do ministro do STF Edson Fachin de anular todas as ações julgadas pela 13ª vara federal em Curitiba em que Lula era réu na segunda passada, seguida pelo julgamento da parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro nos casos envolvendo o ex-presidente Lula na terça (que foi momentaneamente suspenso por pedido de vistas do ministro Nunes Marques) e depois seguido pelo discurso de estadista do ex-metalúrgico na quarta mudaram a política no Brasil, reconfiguraram o quadro e a disputa políticas, moveram as peças do jogo da política atual e das eleições 2022. 

O principal argumento usado pelos ativistas bolsonaristas do governo federal e os militantes da anti-política era que o PT e Lula haviam criado o maior esquema de corrupção da história da país, e isso caiu por terra definitivamente agora, embora nos últimos meses o papel e as consequências da Lava Jato e aliados tenham vindo à tona e submetidas a um escrutínio público cada vez mais desfavorável aos vitoriosos nas eleições de 2018, justamente a Lava Jato e Bolsonaro. Além do esvaziamento do discurso anti-PT e anti-Lula, passou a haver um protagonismo da esquerda que era mais difícil de fazer nos últimos anos, desde 2015, em parte porque o discurso do suposto “combate à corrupção” entrou em contradição pelos esquemas financeiros e políticos montados pela Lava Jato e por Bolsonaro, e em parte pelo esgotamento do discurso neo-liberal de esvaziamento do Estado. Desde o governo Temer o discurso de que o Estado é corrupto, que o tamanho do Estado deve diminuir e as políticas sociais devem ser reduzidas ao máximo para que se crie um novo ciclo de crescimento econômico vem sendo usado. Algumas reformas de caráter privatizante e de austeridade fiscal foram implementadas, como a aprovação da emenda constitucional 95, em 2016, a Reforma trabalhista, em 2017, a Reforma da Previdência, em 2019, o desmonte e a privatização da Petrobras e a destruição dos bancos públicos (Caixa Econômica, Banco do Brasil e BNDES). Apesar desse sucesso na implementação da agenda neoliberal, houve um fracasso retumbante das promessas desse ciclo, com o aumento do desemprego, a precarização dos postos de trabalho que se mantiveram e um crescimento em mais de 10 milhões de pessoas desalentadas, que não são computadas como desempregadas, pois desistiram de buscar emprego, mas permanecem na pobreza e na miséria. Assinale-se que esse aumento dos desalentados não produziu uma diminuição dos desempregados, que voltaram a subir em 2019 e 2020.

Isso tudo abriu espaço para uma ofensiva da esquerda, com Lula à frente, com uma diminuição do espaço do suposto “centro político”, o DEM, PSDB, Moro, Luciano Huck e Luis Mandeta, e a polarização entre as forças do Lulo-petismo e do bolsonarismo daqui por diante. Os representantes do “suposto centro” votaram sistematicamente em todas os projetos de política econômica do governo federal no Congresso, são sócios no projeto ultraneoliberal implementado hoje apenas no Brasil, pois nem os Estados Unidos implementam mais a agenda da austeridade fiscal, especialmente depois que na semana passada o Congresso de lá aprovou um pacote de estímulos ESTATAIS para a Economia de 1,9 trilhões de dólares, e metade disso será para ajuda às famílias, num grande projeto de renda mínima no maior país capitalista do planeta.

Forças políticas de partidos que hoje estão na base de Bolsonaro acenam com uma aproximação com Lula e o PT, forças de esquerda se animam e passam a se mobilizar mais, o engajamento digital dos militantes de esquerda cresceu mais de 4 milhões de pessoas entre segunda e quinta, a partir desses eventos. Mas os atores políticos do “suposto centro”, que na verdade têm o mesmo programa econômico que Bolsonaro implementou e são igualmente responsáveis pela tragédia social, econômica e ambiental brasileira, procuram usar o que eles têm de mais afinado com seus interesses, os meios de comunicação empresariais. Usam esses meios para reforçar um discurso de que a polarização entre Lula e Bolsonaro seria uma polarização de extremos e, por isso, esses partidos seriam mais confiáveis ao mercado e supostamente civilizados na política. Na verdade, uma disputa política pode estar polarizada sem que os dois que a polarizam sejam “extremistas”. São questões distintas, não devem ser confundidas.

Entre 2003 e 2014, tivemos um governo que promoveu um grande avanço social na História, com criação de 22 milhões de empregos formais e ascensão social de 40 milhões de brasileiros das classes D e E para a classe C. O Brasil se tornou a sexta maior economia mundial e todos os indicadores sociais melhoraram substancialmente

Esse discurso é repetido à exaustão, e muitos discursos ideológicos massificados podem virar senso comum na sociedade, mas uma análise mais racional e histórica demonstra que se trata de um discurso equivocado e até risível. Assim como o discurso da superioridade ariana foi repetido insistentemente e a maior parte da população alemã acreditou nesse absurdo, também podemos ter discursos que tentam se estabelecer como hegemônicos hoje, como do Estado mínimo, do ataque aos direitos humanos, de que o Brasil vivia um regime socialista nos governos Lula e Dilma, ou que Lula e Bolsonaro são extremos e se equivalem. Esses discursos podem se consolidar ou não, a depender da disputa política-cultural-moral na vida social. Entretanto, basta uma análise da História recente para vermos a sua pobreza. Entre 2003 e 2014, tivemos um governo que promoveu um grande avanço social na História, com criação de 22 milhões de empregos formais e ascensão social de 40 milhões de brasileiros das classes D e E para a classe C. O Brasil se tornou a sexta maior economia mundial e todos os indicadores sociais melhoraram substancialmente, mas isso foi feito sem mudar a Constituição, sem mudanças institucionais ou na regra do jogo democrático. Foi um momento em que os empresários lucraram muito no Brasil, em que as empresas que forneciam equipamentos e máquinas para a indústria do petróleo, a indústria naval, a indústria da construção civil e o agronegócio e empresas associadas tiveram crescimento expressivo, aumentando suas margens de lucro e se internacionalizando, disputando mercados em outros países. Até os bancos tiveram lucro, mas a desigualdade social diminuiu. 

Logo, não são equivalentes Lula e Bolsonaro. Lula está mais para um governo de centro-esquerda em composição com o centro que respeita as regras democráticas, que dialoga com todos os setores e sempre respeitou o judiciário e a imprensa (imprensa que depois se tornou golpista); e Bolsonaro está para um extremista de direita que ataca as Universidades, a Cultura, a Ciência, o uso de vacinas, o SUS, que ameaça fechar o STF e intervir militarmente na conjuntura e procura armar seus aliados para caso perca as eleições em 2022, com um golpe, inspirados pela ação golpista-miliciana se seu ídolo Donald Trump nos Estados Unidos. Esse plano Bolsonaro não escondeu, na verdade até alardeou, o seu objetivo ou dizer que “no Brasil acontecerá a mesma coisa ou até pior caso ele perca as eleições”. O discurso de Lula na quarta passada e, muito mais, a experiência de governos passados, o credenciam a desmontar essa farsa e a abrir diálogo com todos os segmentos, a diminuir o espaço de figuras políticas, que que até já estão desistindo da disputa.

Com essa nova fase na conjuntura, e um assertividade muito clara de propor um novo modelo de desenvolvimento econômico, social, sanitário e ambiental, o segmento da esquerda pode apresentar uma outra alternativa muito distinta da que vivemos. Essa alternativa não poderá ser como em 2003, pois as condições nacionais e internacionais eram distintas e por que para retomarmos hoje um protagonismo do Estado com as políticas sociais mínimas e reconstruir sua capacidade de intervir, regular e induzir a Economia, precisaremos implementar reformas inadiáveis. Reformas como a tributária, a bancária, a urbana, a reforma agrária e dos pequenos agricultores, uma continuidade da expansão das universidades e institutos federais de Educação, reforma na regulação da comunicação social, da democratização do judiciário, todas serão essenciais e demandarão uma concertação social de amplo espectro, mas de mudança hegemônica clara e em muitos casos de confronto com interesses estabelecidos. 

Um exemplo, dentre todos os outros seria a reforma tributária. O Brasil é dos países do mundo que não faz justiça tributária, pois aqui quem ganha dois salários mínimos paga imposto de renda, e as maiores rendas nunca têm alíquota acima de 27,5%, assim como a distribuição de lucros e dividendos das empresas não é tributada no Brasil (coisa que só ocorre aqui desde 1995 e na Letônia), nem as grandes fortunas ou heranças maiores.

Nesse novo modelo de desenvolvimento nacional a ser debatido ganham lugar central a Educação em todos os níveis, o investimento em Ciência e Tecnologia, a necessidade da transição ecológica da Economia, a Economia Criativa e do Conhecimento. Vivemos um processo extremamente acelerado de mudança tecnológica. A Revolução Industrial 4.0, com a Inteligência Artificial (AI), a automação industrial, a robotização e a biotecnologia produzem uma reconfiguração econômica e social radical, mas o Brasil hoje volta a se tornar um país exportador de bens primários, agroexportador como era em sua época de Colônia, com diminuição da indústria em termos absolutos e relativos no PIB e a destruição do parque científico e tecnológico. 

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicou, antes do início da pandemia, que em dez anos seriam extintos 300 milhões de postos de trabalho no mundo devido à Revolução 4.0, mas no Brasil temos falta de mão de obra em Tecnologia da Informação (TI). Em um cenário de 13,4 milhões de brasileiros desempregados, sobram vagas no setor por falta de profissionais qualificados. O setor foi responsável por 7% do PIB de 2018 e demanda 420 mil novos empregos entre 2018 e 2024. Esses números fazem parte de relatório da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom). Assim como na TI, os setores que se apresentam promissores são os ligados à Economia do Conhecimento, que envolve a Economia da Cultura, mas vai além, pois a Economia do Conhecimento envolve também a arquitetura, as engenharias, as tecnologias digitais a produção de conteúdo digital, a moda, a indústria farmacêutica e de biotecnologia, as atividades de Saúde e de Educação, dentre outras. 

deve haver uma estratégia de desenvolvimento científico e tecnológico ligado à estratégia de desenvolvimento social, de reindustrialização e também de passagem para uma Economia que anule a emissão de mais carbono.

São todos setores nos quais a Educação Integral na fase da Educação Básica e o fortalecimento do sistema superior público de Educação Superior são pressupostos. Da mesma maneira, deve haver uma estratégia de desenvolvimento científico e tecnológico ligado à estratégia de desenvolvimento social, de reindustrialização e também de passagem para uma Economia que anule a emissão de mais carbono. Antes de ser um obstáculo ao desenvolvimento, a Economia Verde é uma oportunidade de criação de novos empreendimentos e de renda para trabalhadores com a energia eólica, a energia solar, construções ecológicas, carros elétricos, reciclagem, reutilização e reuso de recursos naturais, dentre outras inovações.

Toda essa nova configuração econômica, social e política evidentemente encontrará resistências, mas mesmo segmentos do empresariado podem se fortalecer com esse novo paradigma, podem se tornar aliados. Não se pode mais analisar a sociedade como dividida em duas grandes classes sociais, há na verdade uma miríade de frações de classes e algumas delas podem construir um novo bloco histórico, que envolve os trabalhadores de setores muito distintos do campo e da cidade, empreendedores pequenos, médios e grandes voltados à produção (e não à especulação econômica), a agricultura familiar e os movimentos sociais que reivindicam a igualdade de gênero, racial e de orientação sexual e são contra as discriminações, assim como os movimentos indígenas e quilombolas. E mais do que em qualquer outro momento da História, a Educação, a Saúde, a Ciência e Tecnologia e a Cultura têm centralidade para uma nova industrialização, uma transição ecológica e para criação de novas oportunidades de trabalho.
 

Edição: Elen Carvalho