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CELEBRAÇÕES

Marcos da cultura de Salvador, festas de largo se reinventam na pandemia

Profano, sagrado, espaço público e espaço privado estão entrelaçados nessas festas, de acordo com pesquisadora

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
A festa de Santa Bárbara, comemorada em 4 de dezembro, abre o ciclo de festas populares em Salvador. - SECOM/GOVBA

A festa de Santa Bárbara, Iansã para os seguidores do candomblé, é comemorada em 4 de dezembro e abre o ciclo de festas populares em Salvador, as chamadas “festas de largo”. Ao longo do mês, comemorações em honra a São Lázaro (6), Nossa Senhora da Conceição da Praia (8) e Santa Luzia (13) preenchem um calendário que atravessa janeiro, com a lavagem do Bonfim, e fevereiro, com os ritos à rainha do mar, Iemanjá. Os festejos só terminam quando o Carnaval chega ao fim.

Este ano, porém, não vai ter o tradicional caruru nem o colorido da multidão vermelha e branca que lota as ruas do Centro Histórico para homenagear a santa, protetora nas tempestades, e padroeira dos bombeiros, comerciantes e das baianas de acarajé. Em meio à pandemia de Covid-19 que, sem uma vacina, ainda não tem previsão de acabar, o prefeito ACM Neto anunciou, na última sexta (27), a suspensão das festas de largo e também do Carnaval, que aconteceria em fevereiro.

Os organizadores vinham se preparando antes mesmo do anúncio oficial. Oferecendo a transmissão de missas pelas redes sociais, com público presencial limitado, ou substituindo procissões por carreatas, as festas buscam se reinventar. A jornalista e doutora em Antropologia Cleidiana Ramos afirma ser difícil precisar as tendências em um contexto inédito como esse. Mas avalia: “Esses eventos têm como uma de suas características essa dinâmica para se revigorar e continuar a acontecer”.

Fé e “furdunço”
Segundo a pesquisadora, os eventos de verão são chamados de “festa de largo” devido à dicotomia da sua ocupação espacial conectando um ambiente particular – as igrejas – e público – área externa e do entorno dos templos. Elas incorporam elementos de caráter religioso, em especial os de matrizes africanas. Ao lado das rezas, procissões e missas, fazem a festa os tambores e as rodas de samba.
Cleidiana explica que as festas entrelaçam elementos sagrados e profanos: “O Carnaval muitas vezes foi descrito como ‘a festa da carne’ em tentativas de colocá-lo em oposição ao início da quaresma. O dia de fazer tudo o que for possível, a inversão para em seguida entrar no tempo de arrependimento. Mas, se formos prestar mais atenção, o Carnaval é um rito que marca ao seu modo um ‘tempo religioso’”. Para chegar a sua data, relata a pesquisadora, articula-se o calendário sagrado de duas grandes religiões – o judaísmo e o cristianismo-católico.

Cleidiana exemplifica também com a festa do Bonfim: “Apesar de todo o furdunço que a caracteriza, ela consiste em uma romaria”, afirma. E justifica: “Na Lavagem caminha-se oito quilômetros debaixo de um sol muito quente”. Ela ressalta que não há uma atmosfera de dor, característica de uma penitência. “Mas não podemos dizer que não há devoção e outros componentes do que podemos definir como sagrado – crença em algum poder mágico, por exemplo – mesmo que alguém seja agnóstico quer agradecer pela saúde; ou quem não acredita em nada, mas entende essa tradição como algo que é importante para a sua terra do ponto de vista político, ou seja, as pessoas vão para aquela lavagem – percorrendo aqueles doloridos e sofridos oito quilômetros – pelos mais variados motivos e com sua devoção, mesmo que ela seja apenas a de percorrer aquele caminho festejando, tomando cerveja”, pondera.

Ainda no caso da festa do Bonfim, segundo a pesquisadora, a rigor ela seria o novenário preparatório e a missa solene no domingo. Mas a festa acaba sendo definida pelo rito da lavagem, na quinta-feira anterior, que não é organizado pela Devoção do Bonfim e que acontece fora da igreja. Conforme a estudiosa, a lavagem do templo foi proibida em 1889, levando-a a tomar o espaço público. “Vemos agora o esforço dessa representação oficial da igreja, com seu cortejo da ‘Lavagem do Corpo e da Alma’, querendo retomar o protagonismo que nunca foi seu”, relata Cleidiana. “Ela existe porque foi expulsa. Observe que a lavagem, que em uma forma mais apressada caracterizamos como ‘profana’, é a definição mais conhecida e completa, inclusive para a mídia, da ‘Festa do Bonfim’”, pontua.

Para a pesquisadora, estes são elementos muito fortes. “Profano, sagrado, espaço público e espaço privado – que muito mais do que separados estão entrelaçados. E acho que nenhum desses elementos serão eliminados facilmente”, avalia.

“Margens Festivas”
Resistindo ao longo do tempo, as festas encontram brechas entre as restrições de um ano atípico: “As pessoas podem não estar lá em Santa Bárbara para comer o caruru no Mercado, mas, possivelmente, devotos vão oferecer o seu, mesmo que em sistema de delivery”, aponta Cleidiana. “Talvez ocorram os eventos online, as famosas lives de música. Imagino que, principalmente, no Bonfim e no Rio Vermelho, vão ter shows relacionados, seja com patrocínios, seja em modelos que vimos no início da pandemia”, afirma.
 
Para ela, as festas já acharam outras formas de ocupação do espaço, nas redes digitais e negócios relacionados. “Elas irão ocupar essas arenas: lives, webinários, missa via YouTube, Facebook. Aliás, a Arquidiocese de Salvador está muito à vontade em relação à transmissão desses eventos”, comenta.
 
Por outro lado, as festas de verão trazem milhões de turistas à cidade e são o ganha-pão de muitos vendedores ambulantes que se cadastram junto à prefeitura para trabalhar. No novo contexto, descortinam-se mais fortemente velhas desigualdades. “Veremos as articulações da indústria da festa mais organizada e, portanto, lucrativa, tendo as potencialidades de resolver suas questões de renda, como as cervejarias”, ressalta Cleidiana.
 
“Mas, e o pessoal na informalidade?”, questiona. “A moça e o rapaz do isopor que mesmo na ‘festa física’ têm que encontrar alternativas para quebrar os acordos das normatizações do poder público? A senhora que vende seu mingau de tapioca para quem chega cedo? O rapaz do churrasquinho, do uber etc?”, destaca a pesquisadora. E reflete: “Por isso é preciso pensar esses eventos e seus impactos sobretudo para o povo de baixa renda, que continua à margem mesmo nesses eventos ‘populares’”.

A estudiosa ressalta ainda que “não é possível que chegamos até aqui, depois de seis meses, sem pensar nessas pessoas das ‘margens festivas’, que encontram nesses eventos um paliativo não apenas para a sua diversão, mas para complementar ou ter a renda. Essa forma desconectada de atentar para outras perspectivas que não a ‘realização do evento’ continua a ser uma característica do poder público em suas várias instâncias”, conclui.
 
Roteiro das festas
Santa Barbara – O tríduo preparatório acontece de 1º a 3 de dezembro, às 17h. No dia 4, não haverá a missa campal na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, e nem a procissão que percorre vários pontos da cidade com a imagem da santa até o Corpo de Bombeiros. Haverá cinco missas com horário agendado – cada uma com capacidade para 50 pessoas. As celebrações serão transmitidas nas redes sociais da Irmandade. Os bombeiros, que distribuíam caruru para os devotos, levarão quentinhas para moradores de rua.

Nossa Senhora da Conceição da Praia – Durante o novenário, que começou no último domingo (29), as orações ocorrem às 19h. No dia 6 de dezembro, às 10h, em vez da procissão, haverá uma carreata levando a imagem da basílica, no bairro do Comércio, em direção à Pituba. Depois, a imagem retorna para o templo e, no dia 8, ficará do lado de fora para que os fieis possam prestar sua homenagem. Neste dia as missas serão às 5h, 7h, 9h (missa solene), 14h30 e 17h. Às 14h, ocorre o ofício da Imaculada Conceição. Apenas 150 pessoas poderão acompanhar as missas, com inscrição prévia pelo telefone 3038-6250. As celebrações poderão ser assistidas pelas redes sociais da igreja. 

Santa Luzia – Entre 10 e 11 de dezembro, serão celebradas missas às 9h e o Tríduo às 18h. No dia 13, a imagem da santa sairá em carreata pelas ruas do Comércio após a missa solene das 10h, na Igreja de Nossa Senhora do Pilar e Santa Luzia. Ainda ocorrerão missas às 6h, 8h, 15h, 17h e 19h. Todas terão um limite de 200 pessoas. Os fiéis podem entrar por ordem de chegada e o portão será fechado quando a capacidade máxima for atingida. As celebrações serão transmitidas pelo canal da igreja.

A festa de São Lázaro terá carreata no dia 06 de dezembro, com saída às 7h da Avenida Parente, 140-B, no Engenho Velho da Federação. As festas do Bonfim e Iemanjá, como outras que acontecem de janeiro em diante, ainda preparam suas programações.

Edição: Elen Carvalho