Bahia

PESCA

ONGs se unem em defesa de comunidades pesqueiras tradicionais do Nordeste

Aliança vai mapear dados e impactos do vazamento de óleo e da pandemia na vida de pescadores artesanais da região

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Cerca de 70% do pescado fresco na mesa do brasileiro provem dos pescadores artesanais. - Enrico Marone/Acervo Rare

Mais de um ano após o vazamento de óleo que atingiu o litoral brasileiro em agosto de 2019 ainda não foram identificados os responsáveis. Tampouco se conhece a dimensão dos impactos para os pescadores artesanais no nordeste, região mais atingida e onde se concentra a maior parte (83,8%) dos pescadores artesanais de todo o país, segundo levantamento da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). O crime ambiental afetou diretamente cerca de 300 mil pescadores em mais de130 municípios nos nove estados do nordeste e dois do sudeste, e impediu muitas comunidades de pescar até mesmo para subsistência.
 
O surgimento da pandemia de Covid-19 no Brasil agravou ainda mais as condições de sobrevivência destas comunidades. Sem poder vender o pescado devido ao isolamento social, e sem apoio para escoar sua produção, prolongou-se a crise dos trabalhadores da pesca. Muitos deles não constam de cadastros oficiais e não conseguem ter acesso a medidas de apoio.
    
Neste cenário de carência de dados e estatísticas insuficientes, as organizações não governamentais Oceana, Rare e Conservação Internacional firmaram a Aliança em defesa das comunidades pesqueiras artesanais do Nordeste. A coalizão vai mapear e divulgar os impactos ambientais e socioeconômicos sofridos por estas populações em virtude do derramamento de óleo e da crise sanitária. “Queremos que as informações finalmente sejam organizadas para basear políticas públicas que ajudem especialmente as comunidades mais vulneráveis”, informa o diretor-geral da Oceana, o oceanólogo Ademilson Zamboni. “Somente a partir da análise do cenário completo é possível priorizar ações e realmente fazer diferença em uma situação crítica como essa”, completa.

Invisibilidade e direitos

Para os pesquisadores, a falta de informações sobre a contaminação do pescado e do meio ambiente também prejudica a volta da atividade em comunidades que têm na pesca sua principal, ou única, fonte de renda e subsistência alimentar. Para a vice-presidente da Rare, Monique Galvão, a Aliança “tem a expectativa de subsidiar as comunidades costeiras com informações atualizadas sobre o território para retomada da atividade pesqueira com maior segurança, além de sistematizar dados para a tomada de decisão junto ao judiciário, governo e mercado”.

Guilherme Dutra, diretor do Programa Oceano, da Conservação Internacional, afirma que ainda é difícil estimar o número de pessoas direta e indiretamente afetadas pelas duas crises. Ele aponta que o país não tem uma base confiável de dados sobre a pesca, o que torna difícil acessar e assistir as comunidades. E relata: “De acordo com o Registro Geral da Pesca (RGP), mantido pela Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP), um total de 65.983 pescadores residem ou atuam nos municípios impactados pelo óleo. Há de se ponderar que atualizações no RGP não são feitas desde 2012. Segundo relatos de representações da pesca artesanal feitos durante a 1ª Audiência Pública da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Óleo, o número de pescadores afetados é muito maior do que o registrado nos sistemas da SAP”.

A lacuna é incompatível com a relevância do setor: “A invisibilidade das informações subestima a importância social e econômica da pesca artesanal no Brasil, e dificulta muito o acesso dessas comunidades aos seus direitos, incluindo possíveis ressarcimentos por tantos danos causados a suas vidas, nestes episódios”, afirma Guilherme. Para ele, “essas informações podem facilitar o direcionamento futuro de ações emergenciais para mitigação de danos socioeconômicos na zona costeira, estimular o poder público a reunir e divulgar de forma mais sistemática dados sobre os pescadores e a pesca, e dar voz às comunidades mais vulneráveis”..

“O que não é visto não é lembrado”

Cerca de 70% do pescado fresco na mesa do brasileiro provém dos pescadores artesanais. Mas isso não os impede de temerem a fome. Com o retorno ainda tímido das atividades de bares, feiras e restaurantes, por onde mais escoa sua produção, parte deles vem se mantendo com o Seguro Defeso. O benefício é pago quando o pescador fica impossibilitado de pescar, como na piracema, período de reprodução dos peixes. Mas ele só é concedido a pescadores cadastrados no RGP. O auxílio emergencial, no valor de dois salários mínimos, conhecido como auxílio do petróleo, também não foi suficiente. Ele foi concedido a pescadores de municípios afetados pelo vazamento de óleo, mas localidades não atingidas também sofreram: os trabalhadores não conseguiam vender os peixes nem tinham direito ao benefício.


O surgimento da pandemia da Covid-19 no Brasil agravou ainda mais as condições de sobrevivência destas comunidades. / Enrico Marone/Acervo Rare

Idiane Barbosa, do Quilombo Guerém, de Maragogipe, no Recôncavo Baiano, é líder de uma das associações de pescadores do município. “O petróleo em si não chegou em nosso município mas chegou o resultado dele, ficamos sem vender nosso pescado. O que a gente pescava era apenas pra comer. E quando já estávamos conseguindo vender nosso pescado veio a pandemia e ficamos sem poder vender novamente”, conta.

Ela relata: “A gente está vivendo basicamente de defeso. Quem tem defeso, porque a Secretaria da Pesca não está fazendo carteira da pesca. Por muita luta nossa abriu uma portaria para quem tem o protocolo da carteira poder ter acesso. Mas são poucas pessoas”. Ela considera que a ação da Aliança pode contribuir: “A gente costuma dizer que o que não é visto não é lembrado. Esses levantamentos vão fazer com que nos vejam, vejam que aqui tem pessoas que precisam de ajuda, que, assim como outras comunidades, também está sendo afetada com a pandemia”.

“Cegueira intencional”

Marizelia Lopes, militante do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e pescadora da comunidade quilombola de Bananeiras, na Ilha de Maré, também frisa: “Eles não enxergam a gente, têm uma cegueira intencional. Não é possível que não vejam a potência da pesca pra Bahia”. E considera: “É como se a gente não tivesse direitos, como se não fosse gente, não fosse cidadãos, como se a gente não pagasse nosso imposto”. Para ela, essa invisibilidade não é gratuita: “Tem um projeto de morte mesmo, que é de extermínio dessa população, dessas comunidades, e é intencional não garantir (a elas) as políticas públicas”.

Marizelia aponta que há comunidades de pescadores que nem têm energia elétrica, ou que têm dificuldades com sinal de internet, o que reduz a possibilidade de acesso a benefícios como o auxílio emergencial. “Isso também é um mecanismo que a elite tem usado contra a gente. A vulnerabilidade com a comunicação é estratégica, ela inviabiliza a luta”, pontua. Os mecanismos desvelam questões que ela denuncia: “Quem são os pescadores e pescadoras, na sua grande maioria, principalmente no recôncavo? São negros e negras, e no sul e extremo sul da Bahia são indígenas. Então imagine como é difícil, os mesmos povos e comunidades a quem historicamente foram negados direitos”. E declara: “Esse racismo adoece a alma, limita a potência da gente e eles também sabem disso”.

Redes de pesca e solidariedade

“A gente nunca deixou de enfrentar o problema, de fugir dos engenhos, dos casarões, pra se aquilombar nas beiras do mar, nas beiras do rio, e aprender isso com nossos antepassados, não abaixar a cabeça, lutar por garantias de direitos e ter dignidade”, ensina Marizelia. Ela conta que as comunidades estão encontrando alternativas em antigas práticas, como o escambo. “A gente tem trocado nosso produto com o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra), trabalhadores dos outros movimentos e entre nós”, explica.

Para lidar com a pandemia, eles têm trabalhado na formação de socorristas. “A gente está fazendo vaquinha online para conseguir comprar os equipamentos, tem também concorrido aos editais para comprar material de limpeza, cestas básicas, e tem tido apoio de instituições como a Cese e organizações não governamentais”, relata Marizelia.

Ações comunitárias são importantes, mas não suprem o papel do Estado. “Com a identificação das populações e comunidades em maior condição de vulnerabilidade socioambiental”, conclui Guilherme, da Conservação Internacional, “esperamos contribuir para que estas comunidades tenham as informações necessárias para cobrar o acesso às políticas públicas a que têm direito”.

 

 

Edição: Jamile Araújo