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Bolívia: eleições sobre o futuro, com gás e lítio

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Passeata na Bolívia contra a presidenta interina Jeanine Áñez
Passeata na Bolívia contra a presidenta interina Jeanine Áñez - Ronaldo Schemidt/AFP
As eleições bolivianas têm um caráter muito mais importante do que somente um significado nacional

O golpe na Bolívia, que impediu que Evo Morales assumisse o seu novo mandato em 2019, teve algumas características particulares: a ameaça de assassinato do presidente e da cúpula do governo foi uma arma para forçar a renuncia dos ameaçados, representantes de órgãos multilaterais deram suporte as acusações de manipulação do processo eleitoral e o país dividido não conseguiu garantir sua escolha democrática. Os militares bolivianos tiveram papel decisivo no golpe.

Jeanine Añez, que se autoproclamou presidente, era candidata nessas eleições de 2020 e retirou sua candidatura para apoiar o velho dirigente direitista do país, Carlos Mesa, frente à preferência por Luiz Arce, do MAS de Evo Morales. O líder racista de Santa Cruz, que invadiu o Palácio com Morales ainda no Governo, Fernando Camacho, continua com sua candidatura em terceiro lugar nas pesquisas.

As eleições serão no dia 18 de outubro. Luiz Arce foi ministro de economia do governo Morales e tenta apresentar um programa para atrair o apoio do centro político do país, afirmando o legado do governo derrubado. Carlos Mesa, o segundo colocado é um político que assumiu a presidência da Bolívia antes de Evo Morales, com um programa moderado neo liberal e que agora pretende uma posição de centro, distante das extremadas posições dos que assumiram o poder depois do golpe. Añez e Camacho eram os candidatos dessas ideias de extrema direita, racistas e conservadoras. Com a renúncia de Añez, esses extremistas continuam com Camacho na disputa.

O favoritismo do candidato do MAS tem levado a direita, que tinha vários candidatos, a tentar se unificar em torno de Mesa, apesar de que o extremista Camacho não parece concordar com essa ideia de unificação contra as ameaças dos apoiadores de Evo Morales voltarem para o governo com Luiz Arce. A disputa do voto do centro é o grande desafio dos dois candidatos em frente das pesquisas. Arce não pode radicalizar muito em defesa de Morales, por medo de perder os insatisfeitos com o governo anterior, mas também com o atual, nem Mesa pode radicalizar em defesa de um programa ultra neo liberal, em um país com muitas desigualdades e que tem vivido os últimos meses em profunda crise econômico, social e sanitária.

Um outro elemento importante nas eleições bolivianas é a posição de Evo, asilado na Argentina, que coordena a campanha de Arce, mas se desloca da liderança principal do movimento. A campanha contra seu governo se acirrou depois que foi derrotada, por pequena margem, a reforma constitucional para permitir o seu terceiro mandato e das denuncias de corrupção e de proteção a um filho ilegítimo. Tanto as denuncias de corrupção, quanto o filho ilegítimo, eram acusações falsas, mas os efeitos políticos foram devastadores para a liderança de Evo, mesmo na sua base política. Com a eleição, a liderança de Arce no seio do MAS aumenta.

O golpe contra Evo não ocorreu no auge de uma crise econômica. Ao contrário, a economia boliviana vinha crescendo e o principal contrato de fornecimento de gás natural do país com o Brasil estava em finais de negociações.

O GASBOL transporta gás natural da Bolivia para o Brasil e os novos gasodutos construídos para a Argentina colocavam desafios para o setor de hidrocarbonetos do país, que vinha também aumentando a utilização interna do gás, tanto para o consumo doméstico, como para sua industrialização e geração de energia elétrica. O grande entrave era a queda dos investimentos que reduziu o volume de adições de novas reservas, colocando dúvidas sobre a capacidade da Bolívia atender aos diversos usos do energético.

Várias disputas internas ocorreram no governo Evo Morales sobre as políticas a serem adotadas pela YPFB, estatal boliviana, que viveu uma grande descontinuidade administrativa, com inúmeras mudanças de diretorias. Um dos temas mais recorrentes era o grau de estatização que o país deveria buscar, em relação as empresas internacionais que atuavam no país, incluindo a Petrobras, além da Repsol, Shell, BP e PDVSA. A questão chave era a decisão de investimento tanto exploratório, como de completação e gestão contínua da produção, que permaneciam nas mãos das empresas internacionais, mas que também não seria possível de ser bancada financeiramente pelo orçamento estatal. As negociações ocorriam e os destinos do governo se associavam aos destinos do gás natural.

Nos últimos anos, uma nova perspectiva se abriu com as possibilidades de grandes reservas do mineral raro lítio na Bolívia, onde se encontram as suas maiores reservas do mundo. O lítio é um mineral chave nas baterias para armazenamento de energia, indispensáveis para a expansão do uso e fabricação de veículos elétricos, assim como para a expansão das energias renováveis, mas intermitentes, como a eólica e solar.

O governo Morales criou a Yacimentos de Litio Boliviano (YLB) e o governo golpista mudou, em dois meses, três vezes a sua diretoria. Uma semana antes de sair do governo, Evo, pressionado por lideranças locais de Potosi, rompeu uma aliança com uma empresa alemã para industrializar o hidróxido de lítio, usado nas baterias. Os habitantes da região de Uyuni querem mais contrapartidas para os habitantes locais na exploração de suas reservas do mineral. De acordo com a legislação boliviana a exploração do lítio é um monopólio estatal, só se permitindo a presença estrangeira na sua industrialização. Há controvérsias sobre se o hidróxido do lítio configura uma industrialização ou é apenas uma melhoria do produto extrativista, nesse case devendo ser um monopólio do estado.

Para complicar a situação geopolítica atual da exploração do lítio, várias empresas chinesas já demonstraram interesses em participar dos empreendimentos, assim como a empresa TESLA, maior produtor mundial de veículos elétricos, explicitamente assumiu sua participação no golpe que derrubou o governo, assim como expressa seu interesse em ter presença no setor.


“Triangulo do lítio” na América do Sul: Bolívia, Argentina e Chile e mapa da Bolívia. / The Economist e shorturl.at/kKP48

Sem base interna, pressionado pelas empresas internacionais e com imensos problemas de integração das várias etnias e redução da pobreza, o governo Evo se tornou vulnerável para atitudes golpistas. As divisões regionais internas, principalmente entre o povo de Santa Cruz e os indígenas de La Paz, entre os conservadores ricos e brancos das planícies fronteiras do Brasil e os indígenas pobres das terras altas, se agravavam.

A esquerda do MAS se radicalizava pedindo medidas mais duras e criticando a política de alianças de Evo com setores empresariais do país em uma perspectiva de “modernização” do país. A esquerda pedia um programa mais radical de nacionalizações mais amplas, estatização generalizada. O programa de Evo pretendia uma industrialização de um país atrasado, sem uma burguesia própria forte, mas fortemente dependente do estado, que utilizaria das rendas de hidrocarbonetos para financiar as mudanças sociais. Esse pacto político se acabou com o golpe.

Agora nas eleições de 2020, a sociedade pode reforçar, pelo voto, as posições de Morales ou legitimar o golpe. As eleições bolivianas assim têm um caráter muito mais importante do que somente um significado nacional. Em uma América Latina que vive uma guinada para governos de direita e de extrema direita, a vitória de um governo progressista de inclinações de esquerda pode ser um fato extremamente importante para a geopolitica da região. Por outro lado, as empresas internacionais acompanham de perto tanto a exploração das reservas de gás natural, como do lítio.

Edição: Elen Carvalho