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MÚSICA

O segundo grande ás: uma homenagem a Sérgio Ricardo

Sérgio Ricardo morreu aos 88 anos de idade e deixa legado de clássicos

Curitiba | PR |
Em 1940 iniciou estudos no Conservatório de Música de Marília para estudar piano e teoria musical - Stephane Munnie e Acervo pessoal

Elejamos, meio arbitrariamente, quatro ases da canção de protesto no Brasil: Taiguara, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré e Chico Buarque. Em comum entre eles, o início pela bossa nova e depois o alçar vôo para a música social que marcou a América Latina dos anos de 1960 e 1970. 

Pois bem, hoje, o segundo deles morreu no baralho.

Depois de Taiguara, foi a vez de Sérgio Ricardo. Sem sombra de dúvidas, uma das mais autênticas e criativas existências musico-políticas brasileiras. 

É quase inconcebível a pouca monta que se dá a sua obra. Mas tudo fica evidente quando decodificamos sua atuação política. Egresso do bossa-novismo, foi o cinema novo que encontrou sua grande contribuição estética à artepolítica do Brasil.

Ator, cantor, compositor e pintor; cineasta, dramaturgo, pianista e arranjador; poeta, ensaísta, violonista e militante-agitador. Eis a busca pelo homem novo que Sérgio Ricardo encarnou.

Uma das histórias mais bonitas de sua trajetória foi ter morado no morro do Vidigal, favela do Rio de Janeiro. Ele queria morar um ano lá para subsidiar seu enredo em torno de Zelão, personagem de uma de suas músicas mais conhecidas. A canção era de 1960 e costuma-se dizer que marcou sua ruptura com a bossa-nova, pouco afeita aos temas sociais do Brasil de então. Nos anos de 1970, Sérgio Ricardo retomou a história e quis vivenciá-la. Mal sabia que a vivência seria um impensável épico à Augusto Boal: os moradores do Vidigal foram ameaçados de despejo e o artista popular, morando no morro, ajudou na sua resistência. Conseguiu o apoio jurídico – gratuito! – de Sobral Pinto e a remoção não ocorreu; depois, mobilizou artistas num concerto beneficente que arrecadou fundos para a comunidade reerguer seus barracos (o espetáculo “Tijolo por tijolo” teve Chico Buarque, Gonzaguinha, Carlinhos Vergueiro e o MPB4); enfim, escreveu sua peça “Bandeira de Retalhos”, a qual conta a história toda (e depois se tornaria inspiração cinematográfica).

Muito se poderia dizer sobre este artista maldito. Amaldiçoado pela indústria cultural, era comum vê-lo participando de encontros de movimentos sociais e estudantis, tal como aprendeu desde os tempos dos CPCs da UNE.

Fiquemos, para fins de uma última impressão, com o inusitado: Sérgio Ricardo aprendeu a ler Marx com João Gilberto. O depoimento para o filme “Coisa mais linda: histórias e casos da bossa nova” (2005), de Paulo Thiago, apresenta esse interessantíssimo evento:

A politização de Sérgio Ricardo é um dos maiores motivos pelos quais poucos segundos foram suficientes para noticiar sua morte na grande mídia televisiva e radiofônica brasileira, hoje. Mas será também um dos maiores motivos para mantê-lo como figura indelével e necessária de nossa história de resistências artístico-políticas!

A seguir, uma seleta de dez de suas composições que mais me falam à alma, incluindo alguns de seus grandes sucessos:

1. “Zelão” (Sérgio Ricardo) – 1960 – tema musical bossa-novista que o afasta do movimento pelo seu teor social

2. “Esse mundo é meu” (Sérgio Ricardo) – 1962 – tema político-social que serviria de enredo para premiado filme homônimo estrelado por ele e por Antônio Pitanga, em 1964

3. “Perseguição” (Sérgio Ricardo e Gláuber Rocha) – 1963 – uma das mais famosas peças que compõem a trilha sonora de “Deus e o diabo na terra do sol”, de Gláuber Rocha

4. “Bichos da noite” (Sérgio Ricardo) – 1967 – música que foi resgatada para a trilha sonora do filme “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, mas que é original da peça “O Coronel de Macambira” (1963), de Joaquim Cardozo

5. “Beto bom de bola” (Sérgio Ricardo) – 1967 – música do famoso episódio em que Sérgio Ricardo quebrou o violão ante a vai da platéia no festival da Record

6. “Canto do amor armado” (Sérgio Ricardo) – 1968 – finalista do festival da Globo

7. “Conversação de paz” (Sérgio Ricardo) – 1971 – muito espirituosa canção que critica as relações internacionais da ONU que caracterizam o capitalismo, seus militares e suas guerras, ou seja, o imperialismo

8. “Calabouço” (Sérgio Ricardo) – 1973 – homenagem ao estudante Edson Luís, morto pela ditadura no restaurante “Calabouço”

9. “Canção do Espantalho” (Sérgio Ricardo) – 1974 – trilha sonora do filme “A noite do espantalho”, estrelado pela dupla Alceu Valença e Geraldo Azevedo, e que concorreria ao Óscar na categoria de melhor filme estrangeiro em 1975

10. “Estória de João Joana” (Sérgio Ricardo e Carlos Drummond de Andrade) – 1983 – disco que o compositor dedicou a musicar o cordel de Drummond

Ricardo Prestes Pazello é Professor da UFPR, músico amador e militante da Consulta Popular.

Edição: Lucas Botelho