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POLÍTICA

Artigo | A queda de Moro e a disputa no bloco fascista

Fingindo surpresa, Moro revelou que o Bolsonaro queria transformar a Polícia Federal (PF) em uma polícia política

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Desde que o lavajatismo entrou no governo Bolsonaro, esse campo perdeu poder e capacidade de intervir na disputa política - Fotos Públicas

O mês de abril de 2020 marcará mais uma virada na política brasileira. O ministro mais forte do governo Bolsonaro caiu. E o fez lançando uma série de acusações graves contra seu ex-chefe. Fingindo surpresa, o ministro Sérgio Moro revelou que o Bolsonaro queria transformar a Polícia Federal (PF) em uma polícia política, intervir em investigações, e ter acesso a relatórios de inquéritos.

Antes de qualquer coisa, é fundamental reconhecer que o lavajatismo não é um aliado acidental do bolsonarismo. Esses dois campos constituem o bloco neofascista. O movimento fascista que está hoje no Palácio do Planalto não existiria sem o lavajatismo nem muito menos sem o bolsonarismo. A relação entre esses dois campos é tão estrutural para neofascismo brasileiro, que até Rosângela Moro, esposa do ministro demissionário, chegou a dizer, em um tempo que essa crise não tinha estourado: “Eu não vejo o Bolsonaro, o Sergio Moro. Eu vejo o Sergio Moro no governo do presidente Jair Bolsonaro, eu vejo uma coisa só”.

O fato é que esse bloco neofascista não é uniforme e abarca interesses distintos que, por vezes, conflitam entre si. Nesse evento da saída do ex-juiz e ex-ministro do governo Bolsonaro, presenciamos mais um evento de desintegração desse bloco. Este artigo tenta identificar os interesses desses dois campos que precipitaram o rompimento da aliança entre eles.

As razões do lavajatismo

O que levou o Sérgio Moro a sair do governo não é difícil de perceber. Desde que o lavajatismo entrou no governo Bolsonaro, esse campo perdeu poder e capacidade de intervir na disputa política. Isso é perceptível se levarmos em consideração a série de derrotas que o ex-ministro acumulou enquanto esteve no Ministério da Justiça (MJ), como nos conflitos em torno do COAF. Mas não são só essas derrotas da gestão lavajatista do MJ que apontam as razões para a atual crise no bloco neofacista.

O lavajatismo se constituiu como o partido de algumas corporações da alta classe média representado, sobretudo, pela elite do funcionalismo público, como os membros do Ministério Público da União (MPU) e da PF. Desde que o governo Bolsonaro assumiu a presidência, não foi apenas Sérgio Moro que acumulou derrotas, mas também essas corporações.

A principal dessas derrotas foi o descumprimento por parte do presidente da tradição de indicação para ocupação do cargo de Procurador-Geral da República (PGR) dentre os escolhidos pela categoria para composição da lista tríplice. Esse ataque à corporação do MPU acarretou na indicação de um PGR que faz corpo mole em cumprir a função de fiscalização e que, por vezes, atua como advogado da Presidência da República. O golpe desferido por Bolsonaro contra essa corporação foi tão certeiro que a colocou em uma pequena crise de liderança e fez o Ministério Público Federal (MPF) – que compõe o MPU –, outrora protagonista na política nacional, desempenhar um papel insignificante.

Na PF, o caminho traçado pela aliança do lavajatismo com o bolsonarismo levou a resultados bem semelhantes. Em 2019, conforme levantamento de fevereiro desse ano realizado pelo Uol, ela reduziu em 15% a realização de suas operações especiais, não atingindo sequer a meta estabelecida pelo ministério. Sob o primeiro ano do governo Bolsonaro e da gestão Moro no MJ, o número de operações foi reduzido ao patamar de 2015. Além disso, como revelou bem o pronunciamento do presidente no dia da demissão do seu ministro, a autonomia da Polícia Federal já vinha sofrendo restrições fortes sob a cumplicidade da gestão Sérgio Moro.

 Três fatos notórios apontam para a decadência da autonomia da PF: a elaboração de relatório entregue ao presidente sobre os inquéritos sobre as candidaturas laranjas do PSL, como reconhecido pelo próprio MJ; a utilização da Polícia Federal para oitiva de Ronnie Lessa sobre namoro entre a sua filha e o filho mais novo de Bolsonaro, e acesso desse depoimento pelo presidente e a cobrança de Bolsonaro para que a PF investigasse adversários políticos, como Witzel e Dória, conforme revelado pela Deputada Carla Zambelli em entrevista à CNN Brasil.

Além desses fatores, é notória a irrelevância que a operação lava-jato passou a ter na política. Até mesmo a demissão de um dos seus maiores símbolos do governo Bolsonaro não foi suficiente para tornar importante, por exemplo, a nota elaborada pelos procuradores da operação sobre as interferências do governo na PF. Irônico é que é justamente o governo de Jair Bolsonaro – apoiado pelos procuradores da lava-jato, segundo um dos membros da operação, para impedir ações que levariam ao seu fim – que está minando o poder político do lavajatismo.

Desse modo, a saída do lavajatismo do governo Bolsonaro se tornou uma questão de sobrevivência para esse campo. A necessidade do rompimento foi acentuada quando a forma de o bolsonarismo lidar com a pandemia do novo coronavírus acelerou o seu afastamento da base social do partido da Lava-Jato, como bem demonstram o retorno dos panelaços em bairros de classe média e a reveladora postagem nas redes da esposa do ex-ministro Sérgio Moro, no auge do conflito entre Mandetta e Bolsonaro, que dizia “entre ciência e achismos eu fico com a ciência”.

Ao contrário do que disse Moro, sua saída do governo não foi para preservar sua biografia. Mas sim para manter o seu capital político diante de sua base social e para recolocar o lavajatismo na disputa política. Até porque o grande momento de Moro nesse pouco mais de um ano de governo de Bolsonaro não foi enquanto estava compondo o governo, mas sim na sua saída. A forma estrondosa de seu rompimento foi para dar munição ao seu campo para disputar a base social desse bloco neofacista para que seu partido volte a lidera-lo.

As razões do bolsonarismo

Mas não são as razões de Sérgio Moro e do lavajatismo para o rompimento que são reveladores e intrigantes. Isso porque apesar de ter sido Sérgio Moro quem pediu demissão, ele o fez porque Jair Bolsonaro praticamente o obrigou a isso. O presidente minou o poder de Moro ao ponto de retirar, sem consulta-lo, o ocupante de um cargo sob a alçada de seu ministério. Por isso, o rompimento não foi do lavajatismo com o bolsonarismo, mas sim o contrário. E são as razões para isso ter ocorrido que merecem maior atenção.

A ação do bolsonarismo de forçar o rompimento de Sérgio Moro tem lógica. Pode não ter sido inteligente, afinal, a perda do capital político do lavajatismo pode ser fatal para o governo, mas não foi um impulso. O bolsonarismo pode ter feito essa movimentação com as seguintes motivações: cumprir objetivos eleitorais; salvar o seu governo e sua família de inquéritos desconfortáveis; constituição de sua polícia política; mudar a natureza do governo. Passemos ao detalhamento de cada uma delas.

A primeira motivação (cumprir objetivos eleitorais), se realmente tiver justificado a decisão do bolsonarismo, é pouquíssimo inteligente. É uma tática comum do presidente Bolsonaro fazer uma fritura de aliados que possam se tornar maiores que ele. Faz isso para afasta-los de sua base para manter a liderança do bloco neofacista, como fez com Dória e com Witzel, por exemplo. Ao enxergar Sérgio Moro como eventual adversário à sua reeleição, Bolsonaro pode ter agido para tentar podar os desejos eleitorais do ex-juiz e do ex-ministro. Considerando que Moro não é exatamente uma figura com muita habilidade política e agora se tornou um personagem sem nenhuma posição de poder, ao ter abandonado a carreira de magistratura para dar o selo de razoabilidade e de honestidade ao bolsonarismo, essa até pode ser uma movimentação com alguma chance de sucesso, apesar de baixa. Pela forma explosiva como Moro abandonou o governo, é provável que os danos eleitorais sejam maiores para o bolsonarismo.

A segunda (salvar o seu governo e sua família de inquéritos desconfortáveis) diz respeito aos inquéritos que causam desconforto à família Bolsonaro. É bem provável que o presidente agiu para garantir a continuidade de seu governo e a liberdade de membros de sua família que podem ter sido ameaçados com o andamento de uma das seguintes investigações: CPMI das Fake News; Investigações sobre rachadinha no gabinete do Flávio Bolsonaro (caso Queiroz); Inquérito sobre a organização dos atos golpistas realizados no dia do exército (que contou com participação do próprio Jair Bolsonaro); Inquérito do STF que averigua ameaças e disseminação de notícias falsas contra os membros da corte. O seguimento dessas investigações pode ter irritado o presidente e o seu campo a ponto de precipitar o rompimento com o ex-ministro da Justiça.

A terceira (constituição de sua polícia política) se relaciona com a anterior. É próprio de um governo fascista o interesse de constituir a sua própria polícia política para ser usada para atacar adversários políticos e proteger a liderança fascista. Apesar da submissão de Moro aos desmandos do presidente em diversas ocasiões, é bem provável que a principal liderança do lavajatismo impunha algum obstáculo a esse projeto do bolsonarismo. Isso porque o primeiro campo se constituiu como o partido de algumas corporações da alta classe média que tradicionalmente reivindicam maior grau de autonomia. Diante disso, Moro deve ter enfrentado resistência à implantação desse projeto do bolsonarismo e, por ser vinculado a esse setor, não foi capaz de debela-la, como pareceu apontar o pronunciamento do presidente e a reação de Moro à decisão do STF que suspendeu as investigações que utilizavam informações do COAF.

A última (mudar a natureza do governo), parte de uma constatação para realizar uma suposição com base em um indício. É possível que estejamos diante de uma mudança na natureza do governo e a expulsão do lavajatismo é um dos sintomas dessa transformação em uma das esferas do governo. O fato é que o governo Bolsonaro ensaia uma mudança em sua relação com a Câmara dos Deputados. Nesse primeiro ano de governo, o presidente não fez o menor esforço em montar uma base nessa casa – chegou até a dinamitar o seu próprio partido – e isso teve como resultado uma tímida capacidade do executivo de influenciar a agenda legislativa. Isso, porém, não impediu que fossem aprovadas parte das matérias liberais justamente pela presença no Congresso de uma maioria parlamentar favorável a reformas pró-mercado.

Também é um fato que o Bolsonaro ensaia abandonar esse método de se relacionar com a Câmara, como aponta a sua aproximação com a direita chamada de centrão. No entanto, é verdade que essa movimentação não está consolidada, como se verifica com o incômodo do centrão com a demora em nomeações dos indicados aos cargos prometidos pelo governo. Essa aproximação definitiva com esse bloco parlamentar tinha como um obstáculo a presença do lavajatismo no governo. Por isso, para completar esse giro da prática parlamentar, o bolsonarismo precisou ter o ex-juiz fora de seu governo.

Não parece que o bolsonarismo aproveitará a crise da pandemia do novo coronavírus apenas para alterar a sua forma de relação com o governo, mas também transformar a base social e a sua agenda econômica. Essa é a suposição que parte de um indício. É um dado que a situação em torno da covid-19 permitiu que o bolsonarismo disputasse uma base que não o compunha integralmente. Por exemplo, a política do auxílio emergencial – que, diga-se de passagem, o governo não moveu uma palha para aprovar – abriu espaço para o governo federal ampliar sua presença no norte-nordeste brasileiro, especialmente entre os setores de trabalhadores informais e dos marginalizados.

No entanto, a tentativa de conquista dessa base se contrapõe com a agenda liberal que elegeu o governo e que mantém a adesão da burguesia ao bolsonarimo. Por isso é possível que tenha sido aberto um conflito entre setores que compõem o governo que pode ser percebido com o desconforto de Paulo Guedes por conta do lançamento realizado por um dos representantes da ala militar, o ministro da Casa Civil, do pouquíssimo detalhado “Programa pró-Brasil” apresentado como agenda para a retomada de emprego por meio da realização de obras públicas. O resultado desse conflito pode alterar completamente a natureza do governo. Por ora, especialmente para manter em sua base a burguesia responsável pela sustentação desse bloco fascista no poder, a vantagem nessa disputa parece estar sendo da ala representada pelo Paulo Guedes.

É provável que a motivação desse rompimento do bolsonarismo com o lavajatismo tenha sido não apenas uma das mencionadas acima, mas uma junção de algumas delas. Tentar descobri-las é uma tarefa das lutadoras e do campo progressista para que possamos acelerar o processo de dissolução desse bloco. Isso porque, como diagnosticou Clara Zetkin, “[...] o fascismo está condenado a um processo de decadência e desintegração. Ele só serve como um instrumento temporário para a burguesia na luta de classes, apenas como um reforço ilegal ou até mesmo legal do Estado burguês contra o proletariado. Porém, seria fatal para nós desempenharmos o papel de espectador esclarecido e apenas esperarmos a desintegração ocorrer. Ao contrário, é nosso dever fazer avançar e acelerar esse processo com todos os meios a nossa disposição”.

Magnus é Militante da Consulta Popular e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)

 

Edição: Monyse Ravena