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Fora Bolsonaro, o desafio da nossa geração

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A crise desencadeada pelo coronavírus é muito complexa e Bolsonaro não assume a responsabilidade enquanto presidente - Isac Nobrega / PR / AFP
Insuflados pelo pandemito, bolsonaristas chegaram a anunciar novas manifestações para este domingo

Diante da grave crise sanitária, social e econômica que se apresenta, Bolsonaro só tem a oferecer bravatas e pedidos de jejum e oração. Negar a gravidade do coronavírus, porém, não vai adiantar, porque a trágica realidade já está batendo na porta. Neste cenário, ministros civis e militares, Congresso e oposição ainda não sabem o que fazer com o presidente.  

1. Omissão e perversidade. As bolsas de valores derretem, o mercado financeiro sucumbe, o edifício teórico da austeridade fiscal desaba. Mas um homem solitário continua agarrado às doutrinas da Escola de Chicago, quando até os EUA já abandonaram e pediram socorro ao Estado.

Este homem é Paulo Guedes, o último neoliberal. Mesmo vendo a pedra fundamental da austeridade fiscal, a Lei de Responsabilidade Fiscal, sendo derrubada por um tucano no STF, Guedes mantém-se irredutível. A maior parte das medidas de auxílio anunciadas se destinam ao mercado financeiro e ignoram 20 milhões de trabalhadores com carteira assinada e 38 milhões informais.

Os bancos, a propósito, em vez de jogar os recursos na recuperação da economia, salvam-se a si mesmos, aumentando os juros para os comerciantes em até 70%. O perigo mesmo, segundo Guedes, são os 600 reais para auxílio emergencial. O ministro tentou barrar o auxílio com justificativas técnicas e até chantageando, condicionando o pagamento à aprovação das reformas, mantendo o mesmo discurso de antes da pandemia.

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A avareza mereceu um puxão de orelha até de Gilmar Mendes. Após a aprovação pelo Congresso, o projeto levou dois dias para ser assinado por Bolsonaro e foi publicado no Diário Oficial apenas no terceiro dia. O corpo mole do governo se estende ao ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni.

Um dos motivos da lentidão é que o governo quer evitar a ampliação do benefício. Enquanto isso, ninguém recebe. Coube ao presidente do Banco do Brasil afirmar com todas as letras que não se trata de incompetência, mas de projeto: o medo é de que não consigam voltar atrás no Estado de bem estar social quando a pandemia passar.

Celeridade mesmo só quando o assunto são empresas e bancos. Rapidinho, a MP 936 foi publicada, estabelecendo novas regras nos contratos trabalhistas, permitindo que o empregador suspenda totalmente salários e jornadas por até dois meses ou em 25%, 50% ou 70% durante três meses.

A diferença em relação à medida de cortes da semana passada é que, agora, o trabalhador recebe em parte ou integralmente o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda. A onda de demissões através de revisões de contratos na Justiça já estava se formando mesmo antes da MP.

O pacote de bondades empresarial da MP ainda inclui o adiamento do pagamento do PIS/Pasep, Cofins e da contribuição patronal à Previdência de abril e maio para agosto e outubro e zerar o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre o crédito.

Porém, em sua defesa solitária do Forte Neoliberal, Guedes agora enfrentará Rodrigo Maia, disposto a pisar no acelerador e se projetar como salvador da economia. Maia pretende aprovar um “orçamento de guerra” e um pacote de medidas sociais, à revelia do governo, no que tem sido seguido pelo Senado.

2. Fora, basta, acabou e chega. A estratégia de Rodrigo Maia é se colocar como parte da solução para a crise, reforçando a ideia de primeiro-ministro ponderado. Já João Dória, que disputa a fatia do eleitorado na direita, foi para o ataque direto. Luciano Huck preferiu sair do radar.

No momento de maior fragilidade de Bolsonaro, a oposição adotou táticas distintas, na avaliação de Thomas Traumann. Para ele, os partidos de esquerda ainda procuram a melhor tática para o confronto de médio prazo com Bolsonaro, mas nesta semana os partidos e ex-candidatos a presidente pediram sua renúncia.

Já o pedido de impeachment protocolado por parlamentares do PSOL há algumas semanas atingiu mais de um milhão de assinaturas de apoio na internet, enquanto a notícia-crime sobre o comportamento de Bolsonaro no combate à epidemia avançou do STF para a PGR, ainda que sem muito futuro.

A saída de Bolsonaro também foi defendida na plataforma conjunta de medidas emergenciais propostas pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Se por um lado é provável que as ações institucionais não ocorram, em especial sem mobilizações de rua, por outro a própria tática de confronto de Bolsonaro parece ter como efeito colateral o surgimento do antibolsonarismo, um sentimento suprapartidário como o antipetismo que alavancou a sua candidatura anteriormente.

Neste caso, a tática pode ser marchar e golpear separados, em flancos diferentes. Pode funcionar como mostra a inusitada troca de afagos entre Lula e João Dória. Neste assunto, vale prestar atenção no que anda dizendo Renan Calheiros, sempre atento para onde os ventos sopram.

3. Isolamento horizontal. Se você estava muito ocupado participando do 15º panelaço seguido contra Bolsonaro, talvez não tenha visto o pronunciamento da terça (31), interpretado aparentemente como um recuo no discurso presidencial - com menos ataques ao isolamento, mas distorcendo as declarações da OMS.

Apenas na aparência, porque logo depois Bolsonaro (ou Carluxo à frente das redes sociais do pai) voltou à carga com fake news contra o isolamento, além de atacar os governadores e o próprio ministro Mandetta.

Na prática, o núcleo presidencial lida com duas estratégias: primeiro, tenta não isolar Bolsonaro dentro do próprio governo, depois de uma semana em que ele atacou seu viceseus ministros e sofreu novas derrotas no judiciário e até nas redes sociais; segundo, mantém o discurso direcionado exclusivamente para a sua base social, capitaneado por Carlos Bolsonaro, agora direto da brinquedoteca do Planalto.

Sempre de olho na reeleição, a estratégia é muito simples: Bolsonaro se antecipa aos efeitos econômicos da crise pós-coronavirus para se apresentar como alguém que esteve preocupado com a situação e não pode ser culpado pelos efeitos. Por isso, as visitas ao comércio e os discursos voltados aos ambulantes e caminhoneiros.

Segundo pesquisa da Quaest, a estratégia tem funcionado com seu público-fiel, aquele terço do eleitorado, especificamente nos públicos evangélicos, mais ricos, mais velhos e com perfil de direita. A aprovação da conduta de Bolsonaro na crise aumenta à medida em que a idade do entrevistado aumenta, chegando a 53% de aprovação entre os maiores de 60 anos.

Ao mesmo tempo em que comemoram o aniversário do golpe militar, os bolsonaristas reclamam do cerceamento das restrições à sua própria liberdade com os decretos dos governadores. Porém, se as declarações serviram para animar a militância bolsonarista na rede, ela permanece restrita ao núcleo mais fiel.

Parte das manifestações de direita se somou à esquerda na interpretação de que, neste momento, as questões de saúde são mais importantes do que a economia, mantendo as interações do bolsonarismo restritas a 10% do volume das redes sociais, segundo a FGV.

De qualquer forma, é este pequeno volume que segue determinando o tom das manifestações de Bolsonaro, enquanto o próprio presidente volta a ameaçar com um decreto pela reabertura do comércio. Insuflada pelo pandemito, a militância bolsonarista chegou a anunciar novas manifestações de rua para este domingo (5).

Só acreditou que Bolsonaro seria capaz de baixar a bola aqueles que, na verdade, torciam para isso, para poder continuar endossando seu governo pandemônico.

4. Bombeiros vestem verde-oliva. A novidade mesmo é que a turma de verde-oliva, que parecia indecisa, resolveu entrar em campo, ao gosto da sua autoimagem de poder moderador. A senha foi mais uma vez uma postagem no Twitter do general Villas Bôas afirmando que a crise exige energia e “ações extremadas podem acarretar consequências imprevisíveis”.

Ou seja, nada de embarcar numa aventura de impeachment, de acordo com o texto que, nas entrelinhas, ameaça até com o estímulo a uma greve de caminhoneiros. Nos bastidores, isso significou maior protagonismo dos ministros militares Walter Souza Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), que diminuíram o protagonismo do ministro Luiz Henrique Mandetta para aplacar o ciúme do chefe e também participaram diretamente da elaboração do “pronunciamento do recuo”.

O papel de Braga Netto nas coletivas, orientando as falas dos ministros e respondendo até sobre a demissão de Mandetta, ilustra este protagonismo. Nos bastidores, um site especializado em defesa e alinhado à direita afirma que Braga se tornou uma espécie de Chefe do Estado Maior do Planalto.

Já Luís Nassif afirma que Gilmar Mendes, na reunião que manteve no sábado (28) com Bolsonaro, propôs que esse Estado Maior tivesse participação de STF, Câmara e Senado. Mas há empecilhos, começando pelos filhos incontroláveis do presidente e pela incerteza quanto ao comportamento de Braga Neto.

Enquanto isso, os militares de certa forma interditaram Bolsonaro indiretamente, até porque não concordariam com uma destituição neste momento. A unidade na caserna põe água, mais uma vez, nos planos do general Mourão, que estava muito à vontade no seu papel de “homem ponderado deste governo” e resolveu aparecer, inclusive com homenagens ao golpe de 64, numa aparente tentativa de dizer que está com os militares e não abre. Vale lembrar que Mourão não é do mesmo grupo de oficiais “boinas azuis”, que estiveram no Haiti como o general Heleno, e nem do grupo político e de amizades de Bolsonaro, como Luiz Eduardo Ramos.

5. Aposta no caos? Uma bomba prestes a explodir é a chegada do coronavírus às grandes favelas brasileiras, locais com alta densidade demográfica, serviços básicos deficientes e ausência de saneamento básico. Há casos confirmados em grandes comunidades de São Paulo e também do Rio de Janeiro. Além da disseminação da doença, outro aspecto desta tragédia é econômica.

Uma pesquisa divulgada pela BBC, ainda que sem muitos parâmetros, ajuda a ilustrar o problema: a maioria das mães moradoras de favelas afirma que terá dificuldade para alimentar a família após um mês sem renda. Neste sentido, chama a atenção a postura de Bolsonaro.

Como dissemos no começo da news, em vez de assumir a responsabilidade, ele se abstém de qualquer culpa. Enquanto isso, seu entorno divulga com frequência falsas notícias sobre desabastecimento e saques de supermercados.

Casos isolados foram registrados nas periferias de São Paulo e Rio, mas o receio de saques passou a ser explorado pelo entorno do presidente como justificativa para a retomada das atividades e a suspensão de decretos estaduais restritivos à circulação de pessoas.

A questão que fica: é um receio ou o desejo de que a escalada do caos abra espaço para medidas autoritárias? Ainda que os cenários possíveis vão desde a renúncia, passando pela interdição informal do presidente, recomenda-se manter no horizonte a possibilidade de uma escalada autoritária nos moldes dos inspiradores do bolsonarismo.

Na Hungria, Viktor Orbán conseguiu que o Parlamento lhe desse poderes extraordinários para governar por decreto, sem controle parlamentar. Bolsonaro, ao jogar para a torcida e apontar os riscos de desabastecimento e saques como se a solução do problema não fosse responsabilidade sua, talvez sonhe com a escalada do caos social para poder fazer igual. Para um analista com fontes na ala militar do governo, a tentativa de Bolsonaro de “governar com o povo” esbarra na sua falta de habilidade e também na falta de apoio junto ao Legislativo e ao Judiciário.

6. O Brasil que não para. Se tem um setor que atendeu ao pedido de Bolsonaro de não parar, são os de mineradoras e do agronegócio, apoiadores de primeira hora. Mesmo com a pandemia e com medidas de isolamento social, os desmatadores estão aproveitando o momento de “eclipse institucional” e o período de seca para prepararem uma nova ofensiva de desmatamento na região amazônica.

Da mesma forma com mineradoras, incluídas como serviços essenciais na portaria ministerial. No caso da Vale, segundo apuração do Brasil de Fato, é comum a circulação de operários em ônibus, refeitórios e entre cidades vizinhas às zonas mineiras. Dois funcionários da Vale estão infectados pela covid-19, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, e muitos dos 55 mil funcionários da mineradora já apresentam sintomas.

Somente quem está no grupo de risco ou atua em áreas administrativas tem a permissão para trabalhar de casa. A pistolagem também não para em tempos de coronavírus e o militante indígena Zezico Rodrigues, do povo Guajajara, foi morto na terça-feira (31), no município de Arame (MA).

Outras quatro lideranças indígenas foram assassinadas no Maranhão nos últimos quatro meses. O estado é alvo de outra ofensiva, desta vez do próprio governo federal que, mesmo com a pandemia, publicou resolução para remoção das comunidades quilombolas de Alcântara para expandir o Centro de Lançamento de foguetes dentro do firmado com os Estados Unidos.

7. Covid-19. Passado o primeiro mês desde a chegada da covid-19 ao Brasil, na prática, pelo menos metade da população brasileira vive em cidades que já registraram casos confirmados de coronavírus. O total de municípios com infecções reportadas cresceu dez vezes nos últimos 15 dias e já chega a 362. Embora esse número represente apenas 6,5% do total de cidades do país, o surto atinge parcela expressiva da população por estar concentrado nas áreas mais populosas do Brasil.

Os números, porém, podem ser muito maiores porque há muitos casos de subnotificação. O Brasil tem ao menos 23,6 mil testes do novo coronavírus (Sars-CoV-2) ainda à espera do resultado, o que equivale a mais de três vezes o total de casos confirmados no balanço das Secretarias de Saúde. Além disso, seis estados brasileiros investigam 390 mortes suspeitas e admitem enterrar corpos sem laudo de coronavírus.

Em especial, em São Paulo, epicentro da epidemia no país, uma resolução da prefeitura, baseada em determinação da OMS, deve ampliar esta zona sombria. A determinação é de que não seja feita autópsia nos casos em que a suspeita do óbito possa ter sido causado pelo coronavírus, caso não tenha sido atestada no hospital, para não contaminar os profissionais, já que um corpo ainda pode transmitir o vírus até 72 horas após o falecimento.

Na prática, muitas das mortes nunca vão ser consideradas como causadas pelo coronavírus e o número real de quem morreu pela covid-19 nunca seja, de fato, conhecido. Uma outra ameaça, neste contexto, é o risco de faltarem equipamentos, da proteção aos profissionais de saúde aos ventiladores mecânicos, por conta da alta demanda internacional.

Cinco semanas após o primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus no Brasil, o Ministério da Saúde ainda não entregou a estados e municípios nem 0,5% dos testes de diagnóstico que prometeu comprar. Segundo o El País, o Brasil tem sido preterido em comparação a outros compradores, como os EUA.

“Os Estados Unidos mandaram 23 aviões cargueiros dos maiores para a China, para levar o material que eles adquiriram. As nossas compras, que tínhamos expectativa de concretizar para poder fazer o abastecimento, muitas caíram”, informou o ministro da Saúde. O fato é que nos próximos dias estaremos no período de aumento exponencial da curva de contágio. Na análise do Medicina em Debate, a curva brasileira tem seguido padrão semelhante à da França, ignorando a subnotificação, mas aparentemente as medidas de isolamento social parecem estar segurando a curva de contaminação.

8. Ponto Final: nossas recomendações de leitura

Bolsonaro aposta no caos para impor medidas autoritárias, alerta Valdete Souto Severo. Em entrevista ao Sul21, a juíza do trabalho avalia os impactos das medidas econômicas para os trabalhadores e alerta que Bolsonaro não está sozinho no desejo de um “estado de exceção”.

Não voltaremos ao normal porque o normal era o problema. Na sua coluna no Brasil de Fato, VIjay Prashad apresenta 16 pontos para superação da crise financeira e da covid-19,  defendendo que “é impossível sustentar por mais tempo que a privatização e a austeridade são mais eficientes que um sistema de instituições estatais”.

Impactos econômicos da covid-19 em bares e restaurantes. Os relatos de trabalhadores suspensos ou que perderam empregos e os de empresários com seus negócios interrompidos pelo avanço da pandemia recolhidos pela Agência Pública.

Os possíveis desdobramentos sobre a presença dos militares no poder. Análise do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da UNESP e do Instituto Tricontinental traça três cenários possíveis para o comportamento das forças armadas no governo Bolsonaro.

Brasil: a insanidade vai muito além de Bolsonaro. No Outras Palavras, o economista José Álvaro de Lima Cardoso critica as medidas de Paulo Guedes e o comportamento do mercado financeiro diante da crise.

O gás ou a comida. A Piauí mostra como a periferia de São Paulo enfrenta as consequências econômicas da epidemia com o preço do botijão de gás subindo, sem renda e com contas a pagar.

Covid-19 expõe a escolha política da concentração de renda. A covid-19 deixa evidente o fracasso da política de concentração de renda e desigualdade no Brasil e essa pode ser a oportunidade para superá-la. Por César Calejon, no portal UOL.

Os riscos da 'coronocracia'. Em várias partes do mundo, governos aprovam medidas potencialmente perigosas à democracia em nome do combate ao coronavírus. No Outras Palavras.

Não foi você. Ensaio de Bruno Carvalho para a revista Piauí em 2018 ajuda a entender o comportamento de Bolsonaro na crise. Avesso à complexidade e à reflexão, Bolsonaro oferece à população o conforto das certezas inabaláveis e a convicção de que a responsabilidade é sempre dos outros. A crise desencadeada pelo coronavírus é muito complexa e Bolsonaro não assume a responsabilidade enquanto presidente. Prefere dizer: “Eles” não deixam você trabalhar.

Edição: Leandro Melito