Minas Gerais

ARTIGO

O uso da pandemia para precarizar a educação pública através de plataformas digitais

Professor e dirigente sindical comenta os problemas da proposta da Fundação Lemann

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
ensino a distancia
"A proposição da EaD é um aproveitamento de uma janela de oportunidade frente ao caos" - Agência Brasil

Desde inicio do isolamento social em função da covid-19, a Fundação Lemann, que leva o nome e é dirigida pelo homem mais rico do Brasil, vem fazendo lobby para a massificação do uso da Educação a Distancia (EaD) na rede pública. Para isso tem buscado articular a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), o Consead (Conselho Nacional de Secretários de Educação) e o MEC (Ministério da Educação).

Em seu site aponta o acesso de alunos a conteúdo curricular através de celulares como a saída da suspensão das aulas por longo período. No desenho de seu projeto, o MEC financiaria o patrocínio de dados de internet, comprados de empresas de telefonia móvel. As secretarias de educação fariam a relação com a comunidade escolar e uma plataforma digital disponibilizaria o conteúdo de, pelo menos, matemática, português e ciências.

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Evidente que tal projeto esbarra em dificuldades operacionais e pedagógicas. A principal dificuldade operacional seria o limite de acesso da grande maioria dos estudantes da educação pública à banda larga fixa. Esta dificuldade seria contornada através da disponibilização de um pacote de dados de telefonia móvel. Argumentam que a falta de computadores nos domicílios pode ser substituída pela existência de mais de um celular por pessoa no país.

Mesmo assim a universalidade do acesso não estaria garantida nos sistemas públicos de ensino de um país extremamente amplo, diverso e desigual. A igualdade de acesso é o primeiro item dos princípios do ensino na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96). Desrespeitar este princípio seria aumentar o fosso de desigualdade no acesso a oportunidades educacionais, dificultando mais ainda o que já prevemos que será um difícil retorno às aulas quando a pandemia passar.

Além da desigualdade de acesso, a dificuldade pedagógica reside na unanimidade entre educadores e educadoras sobre a evidente perda de qualidade no processo de aprendizagem. A substituição de dias letivos na forma presencial seria um prejuízo irrecuperável. A possibilidade de realizar esta substituição por acesso a plataformas que disponibilizam conteúdos sem a participação efetiva do docente responsável pela turma significa desrespeito à liberdade de ensino prevista no artigo 206 da Constituição.

Ao se tratar de educação básica, seja no ensino regular, seja na Educação de Jovens e Adultos, faz-se necessário o acompanhamento presencial de educadores para o esclarecimento de dúvidas sobre os conteúdos trabalhados, a realização de atividades e a efetivação da dialogicidade para construção do conhecimento. Nesta etapa do ensino, o fortalecimento do vínculo educador-educando é fundamental para o processo de ensino-aprendizagem.

Além disso, a falta de formação da quase totalidade dos docentes na educação básica para o ensino à distancia pressupõe que o conteúdo e o método utilizados serão concebidos fora da escola e possivelmente pré-determinados. Assim, certamente não levariam em consideração as condições locais de aprendizagem.

Com argumentos tão fortes e evidentes contrários ao projeto, só resta a certeza de que a sua proposição é um exemplo claro do aproveitamento de uma janela de oportunidade frente ao caos. Ou seja, usar o dilema posto pelo isolamento social às secretarias de educação de como realizar os 200 dias letivos e as 800 horas de aula impostas pela LDB. Essa situação cria as condições para fazer a experiência em larga escala do uso de suas plataformas digitais de ensino na educação pública.

Quem é Lemann

Mas em troca de quê Jorge Paulo Lemann se arriscaria a este desgaste? Em primeiro lugar trata-se do dono de alguns fundos de investimento. Apesar de ser conhecido como um dos principais sócios da Inbev, seus negócios são marcados pela diversificação que caracteriza o capital monopolista.  Além da 3 G Capital, Lemann é também o principal acionista do fundo "Gera Capital".

Entre outros negócios, inclusive na área da saúde, este fundo criou em 2013 a holding "Eleva Educação" e através dela vem comprando grandes escolas em todo país. As escolas mantêm seus nomes de origem, em vários estados do país, como o Coleguium em Minas Gerais, porém têm em comum o uso da plataforma de ensino Eleva.

Importante salientar que neste momento o uso de EaD na educação pública não pode ser feito com instituições privadas empresariais. Isso se deve a uma considerável conquista da educação pública na Constituição Federal, uma vez que seu artigo 213 veda que dinheiro público da educação seja usado para fins lucrativos. A experiência durante a pandemia, se for concretizada, seria realizada com uma plataforma mantida por uma instituição sem fins lucrativos.

Mas para resolver esse problema a médio prazo um dos deputados federais formados e apoiados por Lemann apresentou emenda à PEC do Novo Fundeb. A emenda 03 do deputado Tiago Mitraub (NOVO – MG) insere o uso do dinheiro público para financiar “o ensino público em instituições com ou sem fins lucrativos”. Além de sua proposta de bolsas para estudantes em escolas privadas, esse artigo possibilita o uso do dinheiro público em diversas “parcerias” com empresas privadas, inclusive o acesso a plataformas digitais de ensino como a Eleva.

A deputada Tábata Amaral (PDT – SP), outra cria de Lemann, também apresentou emenda ao Novo Fundeb vinculando aumento de repasses do Fundo ao alcance de resultados educacionais pelas redes de ensino municipais e estaduais. Sabemos que esses resultados são medidos de forma padronizada e tal regra tende a favorecer empresas que ofereçam conteúdo padronizado como a Eleva.

Lemann, dessa forma, pretende introduzir um cavalo de troia na educação pública (perdão pelo uso de figura tão repetida, mas descreve bem o que se apresenta). A ameaça real da proposta é a generalização da terceirização do ensino na rede pública e a uberização da docência com o uso de plataformas digitais.

Para o empresário, o resultado poderá ser a abertura de um mercado a muito ambicionado pelo capital, as mais de 80% de matriculas da educação básica que se encontram na rede pública de ensino, e a canalização do fundo público da educação para a reprodução capitalista. O momento da quarentena talvez seja a oportunidade para, ao invés de colocar a educação à disposição do mercado, os educandos possam experimentar outros conhecimentos fundamentais à humanidade. Entre eles estão a solidariedade, o afeto, e a consciência imprescindível de que não há mais espaço para o individualismo neoliberal.        

Fábio Garrido é professor da rede estadual e diretor estadual do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-Ute/MG).

          

Edição: Joana Tavares