VIOLÊNCIA

Disputas entre lideranças e bolsonarismo tensionam greve da PM no Ceará

Em 48h de motim, foram registrados 51 homicídios em todo estado; 9 batalhões estão fechados por policiais paralisados

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

A Força Nacional e tropas do exército foram enviadas pelo governo Bolsonaro ao estado - Foto: José Cruz/Agência Brasil

Paralisações, ataques à batalhões, policiais encapuzados e comércios fechados. A insatisfação de policiais e bombeiros militares do Ceará, que reivindicam aumento salarial, atingiu seu ápice ao longo dos últimos dias.

A situação se agravou ainda mais após o senador Cid Gomes (PDT) ter sido alvejado por dois tiros de arma de fogo na quarta-feira (19), ao tentar furar um bloqueio de policiais militares usando uma retroescavadeira, na cidade de Sobral. 

Para conter a onda de protestos em diversos municípios, Jair Bolsonaro autorizou a ida das Forças Armadas ao estado por meio Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As tropas devem se integrar à Força Nacional a partir desta sexta-feira (21). 

As consequências da paralisação são diretas: Em 48h de motim, foram registrados 51 homicídios. Mais de um por hora. A média diária deste ano, até 18 de fevereiro, era de 6 assassinatos. Os dados são de monitoramento da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS/CE). Ao menos 9 dos 43 batalhões do estado estão fechados pelos policiais protestantes. 

Mas, quais são os elementos por trás da articulação e das ofensivas policiais que tomaram os noticiários em todo o país? Na avaliação de fontes entrevistadas pelo Brasil de Fato, interesses políticos e eleitorais de lideranças de direita que disputa referência entre a categoria amotinada, não podem ser ignorados. 

Segundo o sociólogo Luis Fábio Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos de Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará, a polícia militar no estado é usada historicamente como mercadoria política. 

“No embate agora, há vários personagens que estão disputando hegemonia dentro das policias. Quase que as reivindicações e condições de trabalho que são legítimas, ficam em segundo plano. Mas isso é parte de um trabalho irresponsável que tem sido feito no campo da segurança pública no Estado do Ceará, que tem manejado as policias para fins político eleitorais”, critica Paiva.

Com destaque, entre tais personagens estão o deputado federal e pré-candidato a prefeito de Fortaleza, Capitão Wagner (Pros), e o ex-deputado federal Cabo Sabino (Avante), que também tem sido ventilado como um dos possíveis candidatos à prefeitura. 

Bolsonaristas, ambos se projetaram na carreira política após liderarem a última greve da categoria em 2012 e seguem atuando nas associações da categoria. 

O começo da nova paralisação se deu no início da semana, após parcela dos policiais amotinados repudiarem proposta do governo estadual. Camilo Santana (PT) sugeriu um aumento salarial progressivo de R$ 3,2 mil, valor recebido por um soldado, para R$ 4,5 mil até 2022. 

Apesar da proposta ter sido aceita em um primeiro momento pelas associações representativas, elaborada após reuniões que contaram, inclusive, com a presença do  Capitão Wagner, a radicalização de parte da tropa travou o acordo e fez com que as entidades recuassem.

Após o confronto com Cid Gomes, em Sobral, o efetivo de policiais que aderiram à greve cresceu como consequência do aumento da polarização. 

Para Elmano Freitas, advogado e deputado estadual pelo PT, um dos fatores determinantes deste cenário seria a disputa da própria corporação protagonizada por Wagner e Sabino, que daria continuidade ao processo das últimas eleições. Ambos saíram candidatos a deputado federal, mas apenas o político do Pros foi eleito.

“Existe uma disputa interna entre o Cabo Sabino e outras lideranças que tem como principal referência o deputado Wagner, na base da categoria, o que levou a um processo de radicalização que inviabilizou o acordo”, explica Freitas.

“Há um outro componente político que é a necessidade de afirmação dessas lideranças perante a tropa e essa afirmação se dá por meio de um radicalização contra o governo do PT”, completa o deputado, a exemplo de declarações contundentes do Cabo Sabino, que tem se colocado como um porta-voz do movimento grevista. 

O mesmo tem sido feito por Wagner, que não poupa críticas ao governador Camilo Santana. Em transmissão feita em sua página do Facebook na manhã desta quinta-feira (20), por exemplo, o político afirmou que o governador não abre diálogo.

“Se diz governo do diálogo e não permite nossa entrada sequer para protocolar um pedido de reunião com o governador. Na hora de pedir ajuda para o governo federal, pega rápido o telefone”, disse, se referindo ao envio da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária ao Ceará, solicitada devido à crise do sistema prisional no estado

Diante das disputas internas entre os políticos de direita, assim como os ataques contra o petista, Luiz Fábio Paiva ressalta a proximidade das eleições, que acontecerão em outubro do próximo semestre. 

“Não tenho dúvida que o pleito municipal tem um peso nisso tudo, com vários agentes que não estão preocupados com os policiais. A preocupação é com capital eleitoral. É ganhar a eleição, entrar em cargos, distribuí-los. A preocupação não é com a instituição, é com capital político. São todos jogando com a polícia em prol de seus próprios interesses”, diz o pesquisador do LEV.

Bolsonarismo desorganizado

Já para Renato Roseno, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHC) da Assembleia Legislativa do Estado, há outros elementos que devem ser levados em conta para traçar um diagnóstico da greve. 

O deputado estadual destaca que há uma decomposição do salário da categoria, que passou anos sem reajustes salariais e sofre com a precarização da atividade. Ainda de acordo com a opinião Roseno, também há uma disputa pela frente do movimento que surge a partir da atuação de novas lideranças que querem ocupar o lugar das antigas, fomentadas pelo bolsonarismo.

Ele acredita que a parcela mais radicalizada da categoria está mais à direita do que o Capitão Wagner e Cabo Sabino. A pressão feita contra o deputado federal do Pros, por exemplo, ao participar da mesa de negociação com o governo, é um exemplo dessa articulação mais extremista. 

“Tem uma parte mais jovem da base que está insatisfeita com suas lideranças tradicionais. Essas lideranças que agora surgem, são dessa nova onda da deriva autoritária, do bolsonarismo não orgânico ou do bolsonarismo como ideologia, que tem um peso nas redes sociais para esse grupo social. Tem um apelo muito grande a ideia de força. As palavras heróis, guerreiro, são sempre entoadas. Existe uma parcela que se sente muito autorizada a, inclusive, fazer abuso ilegal com práticas milicianas”, afirma o deputado.

Segundo Roseno, tal bolsonarismo não é orgânico mas se inspira na quebra do Estado Democrático de Direito autorizada constantemente por Bolsonaro. 

Embrião miliciano

A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS/CE) está monitorando ações violentas por parte de militares e as classificou como insubordinação e vandalismo.  A Polícia Civil do estado está nas ruas com o objetivo de reforçar os trabalhos de policiamento nos municípios. Até o momento, quatro policiais militares estão presos e irão responder por atos criminosos.

Conforme informações da SSPDS, em torno de 300 Inquéritos Policial Militar (IPM) já foram instaurados. Processos disciplinares também estão sendo instaurados na Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD). 

“Todos os investigados sofrerão as punições previstas em lei e serão excluídos da folha de pagamento deste mês pela Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag). Os militares que abandonarem o serviço sofrerão as mesmas sanções”, disse a secretaria, em nota publicada em seu site oficial. 
 
Com a chegada das forças federais ao estado por meio da GLO, Renato Roseno demonstra preocupação com o que pode vir a acontecer no Ceará. De forma contundente, ele defende que, além de “repudiar e responsabilizar qualquer atitude miliciana”, o diálogo entre a categoria e o governo devem ser restabelecidos.

“Não podemos deixar acontecer aqui o que aconteceu no Rio. Não podemos deixar crescer milicianos. Temos que dizer isso para a sociedade, mas, sobretudo, dizer isso para a tropa.  É preciso recuperar a autoridade pela capacidade de diálogo e não pela força”, frisa. 

Os policiais militares encapuzados que estavam no batalhão no qual Cid Gomes foi baleado, ocuparam na madrugada desta sexta (21) um outro quartel em Sobral.  Em entrevista à Folha de S. Paulo, o vereador Sargento Ailton, que também atua como uma das lideranças na cidade, afirmou que os policiais permanecerão no local “até existir um acerto entre o governo e as lideranças dos policiais em Fortaleza". 

Em nota publicada pelo Movimento Policiais Antifascismo, divulgada nas redes sociais na manhã desta sexta-feira (21), a organização defendeu a mobilização. “A luta dos policiais é legitima e é uma resposta aos descasos que o governo do Ceará vem tendo contra os Servidores Públicos daquele estado, inclusive fazendo coro com a aplicação de uma reforma da previdência que ataca a todo funcionalismo público cearense”, diz o texto.

Na carta, eles apontam que não há elementos que apontem a participação de milicias entre os amotinados.

"Por conta de uma menor adesão dos policiais, os grevistas passaram a radicalização das ações, não havendo nenhum elemento que possa apontar a participação de grupos paramilitares, conhecidos como milícias, nas ações dos grevistas. Evidentemente que os excessos e abusos que possam ter sido cometidos pelos grevistas deverão ser observados, mas a vinculação da greve ao ‘poder das milícias’ é uma ficção que tem por objetivo tão somente criminalizar o movimento”, registra o texto. 

Transferência

Na tarde de quinta (20), Cid Gomes recebeu alta da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Sobral e foi transferido para um hospital particular em Fortaleza. A saúde do político segue estável. 

Edição: Leandro Melito