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Brasil tem 710 mil presos em cadeias que comportam 423 mil; 31% não foram julgados

Para especialistas, é pontual a redução na superlotação e no número de presos provisórios divulgada nesta quarta (19)

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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País ocupa a terceira posição mundial em número de pessoas privadas de liberdade - Arquivo/Agência Brasil

O número de pessoas presas sem julgamento no Brasil atingiu o menor patamar dos últimos anos. Dos 710 mil presos do país, 31% são provisórios. No mesmo período do ano passado, o percentual era de 35,9%. As informações são do levantamento feito pelo Monitor da Violência, divulgado nesta quarta-feira (19).
 
Apesar da diminuição, o número ainda é alto e a proporção de presos provisórios em grande parte dos estados é maior do que a média nacional. No Ceará, por exemplo, 54,3%, dos presos estão privados de liberdade antes mesmo do julgamento. No Piauí e na Bahia, o índice é de 49,3%. Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas também apresentam percentuais maiores do que 40%.

Produzido pelo G1 em parceria com o Núcleo de Estudos de Violência (NEV), da Universidade de São Paulo (USP), e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o monitoramento também revela como as prisões brasileiras seguem abarrotadas: São 423.389 vagas para 710 mil presos, uma superlotação de 67,8%. O índice apresenta redução em relação a 2019, quando o percentual era de 69,3%. Por outro lado, ano passado o número de presos era de 704 mil.  

Segundo Thandara Santos, socióloga e membra do FBSP, o levantamento endossa uma realidade já conhecida de superpopulação prisional. “Se formos considerar em números absolutos, o Brasil está na terceira posição mundial em número de pessoas privadas de liberdade. Sabemos que é um sistema grande e ineficiente para combater a criminalidade”, avalia. 

 

Prisão provisória não é exceção

Em relação à diminuição de presos provisórios, a especialista pondera. “Ainda que tenhamos visto uma pequena melhora nesse percentual, ainda estamos falando de um em cada três pessoas presas que são presas provisórias. Isso não é exceção. Claramente, a prisão provisória não é uma exceção no Brasil”, critica.

A realização das audiências de custódia em todo Brasil, feitas a partir de articulação do Conselho Nacional de Justiça com o Ministério da Justiça, seriam parte responsável nessa diminuição. De acordo com o CNJ, mais de 220 mil audiências aconteceram em 2019. Os presos receberam liberdade provisória em 88,4 mil delas. 

“Esse seria um impacto a longo prazo das audiências de custódia que tem como possibilidade oferecer para o juiz uma opção a prisão no momento do flagrante. A pessoa é apresentada e ele pode manter ou deixar essa pessoa para responder em liberdade”, explica Thandara. Ela acrescenta que, para que mais pessoas entrem a liberdade, é preciso uma articulação de outras esferas do Estado. 

“A manutenção dessas audiências depende muito de um trabalho de articulação diário com dos tribunais de Justiça com os poderes executivos estaduais, para garantir que isso continue acontecendo, que tenha contingente policial para acompanhar as audiências e espaços nos tribunais de Justiça e que isso entre nas agendas dos tribunais”, diz a integrante do Fórum. 

Encarceramento como regra

Thiago De Luna Cury, coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária de São Paulo (NESC), corrobora a análise de que a redução é pontual perto da estrutura que ainda se mantém no sistema prisional. 

“Ainda que em números absolutos tenha havido uma queda de presos provisórios, não dá para dizer, como [Sérgio] Moro disse há um tempo atrás, que o Brasil não prende muito, que não há excesso de presos provisórios no Brasil. Desses presos provisórios, 40%, ao final, recebem o regime aberto, uma pena restritiva de direito ou são absolvidas”, aponta o defensor, reforçando a injustiça cometida com parte relevante das pessoas detidas sem julgamento. 

Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) também alertou que 4 entre 10 pessoas que respondem a processos presas no Brasil não são condenadas a penas privativas de liberdade, ou seja, ficam presas sem necessidade.

Desses presos provisórios, 40%, ao final, recebem o regime aberto, uma pena restritiva de direito ou são absolvidas.

Apesar do mecanismo das audiências de custódia, o relatório “O Fim da Liberdade”, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), publicado ano passado, registra como a lógica punitivas se perpetua no país. No município de São Paulo, por exemplo, 65% de pessoas detidas em flagrante são mantidas presas após audiência de custódia. 

“O estado de São Paulo continua prendendo muito mesmo com a audiência de custódia. E o mais assustador é que, na capital, a taxa de liberdade provisória irrestrita é 0%. Ou seja, daqueles que tem a liberdade provisória, todas elas são condicionadas a comparecimento mensal ou outra medida cautelar. Ninguém tem liberdade aqui em SP”, reprova Cury.

 

 

Sistema saturado

Conforme divulgado pelo Monitoramento da Violência, atualmente existem 48.587 vagas no sistema prisional em construção no Brasil. Mesmo se as vagas existissem, não seriam  suficientes para cobrir nem 1/5 do déficit atual em nível nacional. 

A situação é ainda pior em alguns estados. Roraima lidera o ranking, com 315,3% de superlotação em seus presídios. São 706 vagas para 2.932 presos. Amazonas e Pernambuco aparecem em seguida, com 171.4% e 143%, respectivamente.  

O que temos hoje no Brasil é a privação de liberdade como a primeira saída para os conflitos sociais.

Para Monique Cruz, pesquisadora da Justiça Global, organização não-governamental que atua na área da segurança pública e em defesa dos direitos humanos, a construção de mais prisões não é a solução.

“A construção de vagas em qualquer lugar do mundo nunca foi a saída para os problemas de superlotação e superpopulação nas unidades prisionais. Quando aumentamos o número de vagas e constrói-se presídios, o que se tende a fazer é prender mais pessoas”, analisa Cruz. “O que temos hoje no Brasil é a privação de liberdade como a primeira saída para os conflitos sociais, para questões que poderiam ser resolvidas por outras formas, inclusive já oferecidas pela legislação”, acrescenta. 

Ela reforça que a diminuição de números é importante frente a um “cenário de barbárie”, mas, defende que não é suficiente. “A discussão é estrutural. Diz respeito a uma lógica e uma cultura do encarceramento. Temos um processo de escolha da privação de liberdade que vai reverberar nesses números”. 

Segundo Cruz, há relatos de pessoas que passaram por audiências de custódia no Rio de Janeiro e foram mantidas em cárcere até mesmo por crimes menores como furto de legumes ou porte de drogas em pequena quantidade.

Os dados do Monitor da Violência foram elaborados com base em informações oficiais de 25 estados do país e do Distrito Federal. Apenas o estado de Goiás, pela segunda vez, negou-se a disponibilizar as informações.
 

Edição: Rodrigo Chagas