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Com que roupa a esquerda vai?

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Em ano de eleições municipais, os temas de interesse do governo, assim como no ano passado, dependerão de articulações no Congresso Nacional - Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
O Boletim Ponto percorre os principais fatos desta semana na política brasileira

Qual a melhor forma de derrotar a extrema-direita? Parece que a esquerda ainda não sabe a resposta mas vai precisar descobrir até as eleições municipais, logo ali. Medidas como a autonomia do Banco Central, reforma administrativa e os ataques aos povos indígenas reforçam a urgência em barrar este projeto. Vamos conversar sobre tudo isso a partir de agora.

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1. Radicalismo de centro. Qual é a melhor estratégia para derrotar a extrema-direita nas próximas eleições? Um discurso moderado, capaz de superar a tal polarização política, ou a radicalidade das propostas inovadoras para superar a desigualdade social?

Poderíamos estar falando das eleições municipais brasileiras, mas o ponto de partida por enquanto é a eleição norte-americana. As prévias do Partido Democrata começaram com uma confusa apuração no estado de Iowa, cujo real resultado é impossível de ser verificado, embora oficialmente tenha dado vantagem de 0,1% para Pete Buttigieg sobre Bernie Sanders. Enquanto Buttigieg vem sendo apontado como o novo Macron, por compartilhar com o presidente francês algumas características pessoais e a simpatia do mercado financeiro, como um bom moço bem conhecido no Brasil, chama a atenção o vigor do discurso do quase octogenário Sander entre os mais jovens. “Se o avanço de Sanders prosseguir, como parece provável, os partidos de esquerda adormecidos terão de examinar a sério ideias que hoje veem como irrealistas ou quiméricas”, avalia Antônio Martins no site Outras Palavras. Para o autor, a candidatura de Sanders escancara três grandes tendências da política atual: a percepção de que as instituições estão submetidas ao poder econômico, um desconforto com a desigualdade que leva o eleitor a aceitar novas ideias, e a paralisia da esquerda tradicional, incapaz de responder a estas mudanças.

No Brasil, a esquerda tem se debatido sobre candidaturas municipais, mas parece ainda não ter encontrado uma fórmula para combater a ascensão da extrema-direita. Porém, as últimas entrevistas de Lula e Dilma talvez sinalizem que o PT considere trilhar o caminho do discurso mais moderado e de alianças mais amplas. Mas, por enquanto, o partido observa a contragosto as movimentações do governador maranhense Flavio Dino (PC do B) em direção à centro-direita, dentro desta mesma estratégia. Trata-se de um debate que vem esquentando e, sobre ele, trazemos alguns artigos na seção de recomendações de leitura.

2. É rede! Mais uma mostra de como o horizonte de Bolsonaro é curto e sua estratégia política se guia pelo humor de seus apoiadores nas redes sociais. No caso da retirada dos brasileiros de Wuhan, na China, o presidente começou a se pronunciar aparentemente respondendo aos temores das pessoas nas redes sociais: na sexta (31), após sentar com alguns ministros, disse que o processo custaria muito caro. Logo em seguida, porém, a posição do governo evoluiu para uma solução rápida para a situação dos brasileiros, e um vídeo divulgado por eles certamente influenciou na tomada de decisão. Já na segunda (3), o discurso já era bem mais enfático sobre a operação resgate. Os brasileiros de Wuhan devem chegar neste sábado (8) e passarão por uma quarentena numa unidade militar em Anápolis (GO), sendo submetidos a exames periódicos.

No final das contas, o que importa é a mobilização permanente de sua base de apoio na internet. Essa é a lógica por trás da bravata de Bolsonaro sobre o preço da gasolina, prometendo zerar os tributos federais sobre combustíveis se os governadores aceitarem zerar o ICMS. A parcela dos impostos estaduais é maior na composição do preço dos combustíveis, mas foram os tributos federais que mais cresceram nos últimos anos.

Os governadores reagiram às declarações de Bolsonaro, mas não há dúvidas de que o presidente segue vitorioso na estratégia de jogar para sua plateia fiel. Estratégia que inclui até mesmo usar a máquina estatal para atacar uma pessoa física, como no caso da cineasta Petra Costa, que neste domingo (9) concorre ao Oscar de melhor documentário por seu “Democracia em Vertigem”. Para Leonardo Sakamoto, o ataque da Secom à documentarista também é uma forma de abafar o escândalo envolvendo a própria secretaria, num momento em que a Polícia Federal abriu inquérito contra o secretário Fábio Wajngarten para apurar se houve crimes de corrupção, peculato e advocacia administrativa. Mesmo assim, o tema do “fim da corrupção” foi uma das marcas das comemorações dos 400 dias do governo. E é possível que cole.

3. República Miliciana do Brasil. Além do mercado financeiro, o outro setor onde o apoio a Bolsonaro é unânime são as milícias que comandam o crime organizado. Como se sabe, o tema é bastante sensível no Palácio do Planalto e a menção de “Marielle Franco” e “Milícia” são suficientes para tentar derrubar o delegado da Polícia Federal. Assim, não é surpresa que Sérgio Moro tenha “esquecido” de incluir na lista dos mais procurados do país o ex-capitão Adriano da Nóbrega, chefe do Escritório do Crime, acusado de assassinar Marielle e cuja a esposa foi lotada no gabinete de Flávio Bolsonaro.

Desde o ano passado, Luis Nassif tem insistido que as iniciativas de Bolsonaro em facilitar o acesso às armas de fogo não têm nada a ver com a indústria armamentícia, mas em armar os civis bolsonaristas, preparando-se para uma crise econômica, social e política. Para o jornalista, os dados sobre o comércio de armas e munição anunciados neste mês comprovam a hipótese: em 2019, atiradores civis compraram 32 milhões de projéteis,a mesma quantidade que as forças de segurança pública. O volume superou em 143% o quantitativo de munições que o Exército informou ter adquirido e as compras diretas dos atiradores subiram 17,2%, enquanto o número de projéteis adquiridos pelos órgãos de segurança pública, incluindo as secretarias de gestão prisional, caiu 14,8%.

Enquanto isso, o Senado está analisando um projeto do deputado Alexandre Leite (DEM-SP), aprovado em tempo recorde na Câmara, que derruba a obrigatoriedade da marcação de munições compradas pelas polícias e Forças Armadas. Sem poder identificar a munição, fica mais difícil rastrear armas e munições de uso exclusivo e que cheguem às mãos de milicianos e outros criminosos.

4. O juiz de garantias de Bolsonaro. O episódio relatado no livro "Tormenta" em que Moro teria chorado e implorado pelo seu cargo parece ser bem verossímil. Após cada crise e tentativa de fritura do ex-juiz, Moro volta ao cenário político mais alinhado a Bolsonaro.

Nesta semana, a Polícia Federal, subordinada ao Ministro da Justiça, concluiu não haver indícios de que o senador Flávio Bolsonaro tenha cometido os crimes de lavagem de dinheiro e de falsidade ideológica. A conclusão é distinta da apuração do MPF. Coincidentemente, na mesma semana, a PF foi à imprensa apresentar e-mails que comprovariam o uso político de contratos da prefeitura do Rio com a empresa Gol Mobile, atribuindo a propriedade da empresa ao filho de Lula, Fábio Luís da Silva. Em nota, os advogados de Fabio criticaram os vazamentos seletivos da PF e lembraram que o MPF já havia arquivado o caso, reaberto pela PF, além de afirmarem que o filho do ex-presidente não é dono das empresas. “Setores da PF ligados ao Moro parecem que estão prevaricando em troca de cargo para ministro do STF”, analisa Tânia Mandarino, do coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia.

Mais preocupado com seu futuro político e em agradar o chefe, Moro tem falhado em outras áreas: a OAB, o governo de Roraima e entidades de direitos humanos têm criticado severamente a omissão do ministro no surto de uma grave doença de pele entre os internos da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (Pamc), sob intervenção federal, e que desde setembro já deformou o corpo de 30 detentos.

5. Parlamentarismo, ano 2. O Congresso voltou à ativa sob certa expectativa de que o “parlamentarismo branco” implantado no ano passado continue funcionando. Na prática, o Congresso garante a pauta do mercado financeiro quando o governo estiver muito ocupado fazendo a guerra cultural, como “comemorou” Celso Rocha Barros na Folha, naturalizando a situação e reclamando do “que foi o governo Bolsonaro quando o Congresso não estava lá para trocar suas fraldas”.

É aquele “novo normal” de que sempre falamos, onde não há problemas com as barbaridades do governo, porque as outras instituições “estão funcionando”. Mas as coisas não são assim tão simples. O que o Congresso irá priorizar num ano mais curto por causa das eleições municipais? A reforma tributária é certa. Mas a pauta inclui outras votações relevantes como as PECs de Paulo Guedes (emergencial, dos fundos e do pacto federativo) e possivelmente a reforma administrativa.

Mesmo com os prazos apertados e temas polêmicos, é fundamental para Rodrigo Maia, em seu último ano na presidência da Câmara, que o Congresso seja bem sucedido. Até aqui, Maia surfou na onda de ser um primeiro-ministro informal e o contrapeso racional a Bolsonaro. Vai precisar acumular bastante gordura para compensar a perda de exposição que este cargo oferece justamente há dois anos das eleições presidenciais. 

Entre os temas espinhosos, nos próximos dias, por exemplo, o Senado deve votar o novo modelo do setor elétrico, que além de exigir licitações nos serviços criaria a figura da portabilidade: o consumidor poderia escolher de qual empresa comprar energia e de qual origem.

Outra questão chave em pauta é a situação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que vence neste ano. A continuidade do fundo é praticamente uma unanimidade entre os parlamentares, mas esbarra na falta de vontade do governo, que na prática quer sacrificar o fundeb no altar do ajuste fiscal. Na avaliação dos parlamentares, o maior empecilho do governo neste tema não é Paulo Guedes, mas o ministro da Educação Abraham Weintraub, considerado sem trânsito dentro do Congresso. Aliás, Weintraub já tem cinco convocações do Congresso para prestar esclarecimentos sobre a lambança do Enem. E um pedido de impeachment por crime de responsabilidade protocolado nesta semana.

6. Autonomia do Banco Central. Entre as pautas centrais do Congresso está um antigo sonho de neoliberais brasileiros, daquele de reunir Marina Silva e FHC a Bolsonaro numa grande corrente para frente: a autonomia do Banco Central. Rodrigo Maia trabalhou no recesso para que o projeto seja votado já no primeiro trimestre, em regime de urgência, sem passar pela Comissão de Constituição e Justiça. Pela proposta, o Banco Central terá autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira e cuidará da estabilidade de preços e o equilíbrio do sistema financeiro sem vínculos com qualquer ministério.

O presidente do Banco Central teria mandato de quatro anos, independente do presidente da República. No caso, o mandato do atual presidente Roberto Campos Neto seria de março de 2020 a 2024. Logo, mesmo que a oposição vença as eleições, só poderia alterar o responsável pela política econômica em seu segundo ano de mandato. Quando os defensores da autonomia usam o exemplo do FED norte-americano, o líder do PT na Câmara e economista Enio Verri chama a atenção que nos EUA o Banco Central é responsável também pela geração de empregos, enquanto no Brasil o BC, para controlar a inflação, permitiu que o desemprego ultrapassasse os 12 milhões de pessoas e a dívida pública fosse para o espaço. Além disso, segundo Verri, os riscos do BC ser sequestrados pelo mercado financeiro são grandes, o que inviabilizaria definitivamente qualquer preocupação social.

7. Meninas pedalam, meninos driblam. Não teve pato na FIESP, não teve plantão na Globonews e nem manifestação na Paulista. Mas o governo superou em R$ 55 bilhões o limite estabelecido pelo teto de gastos no ano passado. A manobra contábil foi delicadamente chamada de "drible" pelo Valor Econômico. O valor é superior às operações realizadas no governo Dilma, chamadas de “pedaladas”, de R$ 36,07 bilhões e R$ 52 bilhões, nos anos de 2013 e 2014, respectivamente, e que motivaram o processo de impeachment. O pior, analisando as contas públicas de 2019, é de que o estouro no teto dos gastos não significou maior presença ou investimento do Estado. Ao contrário. O destino dos recursos públicos são os bancos: no ano passado, foram pagos R$ 367 bilhões ao pagamento de juros da dívida, enquanto o montante desta mesma dívida cresceu 10% graças aos juros cobrados pelos bancos. E não é preciso fazer muitos cálculos para descobrir aonde o cobertor ficou curto. Por exemplo, o programa de combate a violência contra mulher não recebeu um mísero centavo. O Bolsa-família, outrora carro-chefe das políticas sociais, incorporou menos de cinco mil novos beneficiários, enquanto a fila de espera para receber o benefício é literalmente 100 vezes maior.

8. Ladeira abaixo. Neste cenário em que a previsão mais otimista de crescimento não chega a 2% ao ano, será bem difícil o país escapar da crise econômica com o setor industrial moribundo. Depois de dois anos registrando um tímido crescimento - 2,5% em 2017 e 1,5% em 2018 - o desempenho do setor industrial caiu 1,1% de 2018 para 2019, com resultados negativos em duas das quatro categorias pesquisadas, em 16 dos 26 ramos, em 40 dos 79 grupos e 54,2% dos 805 produtos, segundo o IBGE. O setor de mineração caiu 9,7%, provavelmente devido à tragédia de Brumadinho (MG), mas metalurgia (-2,9%) e celulose/papel (-3,9%) também tiveram quedas significativas. Outro destaque nos dados do IBGE são as quedas mais acentuadas da produção de bens intermediários e de bens de capital. No Brasil de Fato, a economista Juliane Furno avalia que o país não tem exercido nenhuma política industrial, além de abrir cada vez mais o mercado para empresas estrangeiras. Como resultado, “o que está se apontando para atividade industrial é mais uma vez uma concentração no setor primário exportador, que tem menor valor adicionado, tem menos trabalho, menos conteúdo tecnológico”, avalia. A nova redução da taxa Selic para seu menor índice histórico (4,25%) é outro indicativo de que não vem crescimento nenhum por aí. Por mais que tenha impacto positivo sobre a dívida pública e sobre o crédito ao consumidor, sem investimento público ou privado rebaixar constantemente a taxa soa como um sinal desesperado para que algo aconteça, mais um sinal de fraqueza do que de força, alertava o ex-ministro Nelson Barbosa em novembro.

9. O nome é genocídio. Conforme anunciado já há algum tempo, Bolsonaro finalmente assinou um projeto de lei autorizando atividades econômicas e de mineração em terras indígenas, prometendo assim “liberdade de escolha” aos povos indígenas. “A proposta abre caminho para um antiga bandeira do capitão. Ele sempre fez lobby para entregar áreas protegidas da Amazônia à cobiça das mineradoras”, avalia Bernardo Mello Franco no O Globo. O projeto também pretende autorizar o plantio de sementes transgênicas nesses territórios, prática proibida por uma lei federal de 2007. Rodrigo Maia, que em novembro afirmou que arquivaria o projeto da mineração, agora mandou criar uma comissão especial para analisar o projeto, supostamente para poder controlar o andamento da matéria. Mas, na avaliação de parlamentares, a matéria tem pouca chance de prosperar neste ano.

O projeto de “incorporação” dos indígenas à sociedade, de acordo com a visão da direita, e a consequente abertura de espaço para atividades econômicas na Amazônia, vai de vento em popa no governo Bolsonaro: na quarta (5), o ministério da Justiça, aquele mesmo, comandado pelo quadro técnico Sergio Moro, nomeou o pastor evangélico Ricardo Lopes Dias para o cargo de chefe da coordenação de índios isolados da Funai, considerada um dos setores sensíveis do órgão por lidar com a população indígena mais vulnerável. Ricardo é ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização missionária fundada nos Estados Unidos, conhecida entre organizações indígenas por forçar o contato com grupos que escolheram viver em isolamento, e tentar evangelizá-los. Em nota, o Instituto Socioambiental alerta que a indicação de um missionário para a área aponta para o retorno de uma política de contato forçado que, quando vigorou no país como política de Estado, nos anos 1970, provocou a morte de milhares de índios por doenças e violência perpetradas pelos próprios agentes de órgãos públicos.  

10. Ponto Final: Nossa recomendações.

A indústria brasileira em espiral de abismo. Crise dura três décadas, mas aprofundou-se rapidamente com desmonte do BNDES, após golpe de 2016. Desindustrializado, país torna-se mais rude e muito mais desigual, escreve José Álvaro de Lima Cardoso no Outras Palavras.

Rios vigiados. Série de quatro reportagens de Patrick Camporez para o Estadão sobre as mais de duzentas áreas de conflitos por água no Brasil.

As chocantes histórias dos 'latões', veículos onde presos defecam, sangram e morrem. Por Felipe Souza para a BBC Brasil.

Quem são os evangélicos calvinistas do governo Bolsonaro. Reportagem de Ronilso Pacheco para The Intercept.

A esquerda no governo. Artigo de José Luis Fiori de balanço da experiência da esquerda latina e europeia para o A Terra é redonda.

De onde vem e pra onde vai a esquerda? Deputada federal Talíria Petrone (PSOL) defende em artigo “uma estratégia política concreta que mobilize as pessoas para lutar”. 

Tarso não vai à festa. Em depoimento ao UOL, ex-presidente do PT explica por que faltará à celebração de 40 anos do partido.

Temos que fazer autocrítica sincera, afirma Mercadante. Entrevista do ex-senador e ex-ministro à Folha de São Paulo.

Ex-presidente do BNDES fala sobre os mitos e a importância do Banco Nacional. Brasil de Fato entrevista o economista Luciano Coutinho no seu canal no Youtube.

Podcast Prato Cheio sobre alimentos ultraprocessados. Feitos basicamente de sal, açúcar e gordura, eram ótimos para alimentar soldados na guerra. Viciam ? e dão muito lucro, provocam doenças crônicas e até depressão.

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Edição: Rodrigo Chagas