Coluna

A balbúrdia é federal

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No dia 22 de fevereiro, o MPF recomendou ao governo que suspenda as inscrições do Sisu
No dia 22 de fevereiro, o MPF recomendou ao governo que suspenda as inscrições do Sisu - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Órgão que realiza o Enem chegou a ficar sem diretor durante cinco meses em 2019

Balbúrdia na organização do Enem, denúncias de corrupção e economia patinando enquanto Bolsonaro põe Sergio Moro mais uma vez para fritar. Neste cenário, é de se perguntar como a avaliação do governo tenha melhorado. É o que vamos tentar entender na edição desta semana. Vamos nessa.

1. Acabou a corrupção? Bastou o PT sair para a corrupção automaticamente desaparecer do país. Apesar do bolsonarismo insistir nesta ideia mágica, na vida real, o Brasil caiu uma posição no ranking do Índice de Percepção da Corrupção elaborado pela ONG Transparência Internacional. É o quinto ano consecutivo de queda. Entre os fatores que contribuíram neste ano estão os casos das candidaturas laranjas, as denúncias sobre Flávio Bolsonaro, os ataques à mídia e à sociedade organizada, além de indícios de interferências políticas em órgãos investigativos como a Polícia Federal e o COAF. E nada indica que o cenário vai mudar. O ano começou com o MPF abrindo investigação sobre “interferências indevidas” de Bolsonaro, Rodrigo Maia e do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para a aprovação da reforma da Previdência. Logo circulou pela internet um áudio em que a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) admite que só conseguiu enviar recursos para um município paulista porque votou a favor da reforma. A deputada admitiu ter recebido emendas, mas disse que foi apenas um "rateio de verbas ministeriais". Não esqueçamos das denúncias contra o Secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, de certa forma ofuscadas pelo vídeo nazista do ex-secretário de Cultura. A agência Artplan, responsável pelo festival Rock in Rio, é cliente da empresa privada do secretário e se tornou a campeã em recebimento de verbas do governo federal. Sem contar que, no modo peculiar de operação de Bolsonaro, seu irmão tem se colocado como um intermediador de demandas de prefeituras de São Paulo com o governo. Enquanto isso, a paranoia ideológica de Bolsonaro torrou 48 milhões de reais em uma auditoria para descobrir que a caixa-preta do BNDES não existia. A auditoria foi contratada ainda no governo Temer, mas o então presidente do banco afirma que o valor pago a um escritório estrangeiro é “quatro a cinco vezes maior” que o aprovado em sua gestão. Um aditivo de 15 milhões de reais no contrato foi autorizado já na era Bolsonaro. Essas notícias nos ajudam a entender o clima de normalidade política no Brasil: a imprensa se defende dizendo que é ela quem está divulgando estes casos, o que é verdade, mas nem de longe ocorre aquele cerco informativo que derrubava a programação da GloboNews e só terminava com a queda de um ministro, por exemplo. O importante, sabemos, é que a economia está “na direção correta”.

2. Moro na fritura. O ano passado talvez tenha sido o pior ano da Operação Lava Jato. Dos vazamentos do Intercept à liberdade de Lula, a República de Curitiba sofreu vários revezes. Mas continua viva. Afrontando a decisão anterior do presidente do STF, o ministro Luiz in Fux we trust derrubou por tempo indeterminado a aplicação do juiz de garantias, uma das derrotas que a turma da Lava Jato sofrera no ano passado como resultado da parceria Maia/Bolsonaro/Toffoli para enquadrar Sergio Moro. A decisão de Fux mostra como o lavajatismo está incorporado em parcelas significativas do judiciário. A denúncia do MPF contra o jornalista Glenn Greenwald por associação criminosa, ignorando o inquérito da PF que isentava o jornalista e contrariando decisão de Gilmar Mendes no STF, além de ter sido baseada unicamente em um áudio que nem indica um crime, é mais uma mostra de como o lavajatismo ainda resiste. O procurador Wellington Divino Marques de Oliveira é o mesmo que denunciou o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, por calúnia contra Moro em dezembro. E que já processou Lula duas vezes, uma delas pela suposta posse indevida de um crucifixo. Para Andrei Meireles, a decisão de Fux pende a balança para o lado de Moro, justo quando Bolsonaro se prepara para reduzir ainda mais o poder do seu próprio ministro, com a desvinculação da segurança pública do Ministério da Justiça, retirando inclusive a Polícia Federal da sua alçada. Quem teve a oportunidade de ler o livro “Tormenta” sabe que Bolsonaro vive em permanente paranoia com relação ao seu entorno: com Moro, não é diferente. E a ideia de criar um Ministério da Segurança Pública, numa discussão com secretários estaduais sem a presença de Moro, passa pela fritura do ministro da Justiça e potencial candidato em 2022. Um dos motivos da ira de Bolsonaro teria sido a entrevista ao Roda Viva, na qual Moro não teria defendido o chefe suficientemente, além do medo que Bolsonaro tem de Moro. Para completar, o ex-deputado Alberto Fraga, amigo de Bolsonaro e cotado para o possível novo ministério, já saiu atirando contra Moro, questionando as suas ações na área de segurança. 

3. Mercado e democracia. Pelo menos uma coisa teve de bom o vídeo do agora ex-secretário da Cultura fazendo cosplay de Goebbels. Desencadeou um debate sobre a suposta separação entre as alas econômica e ideológica do governo, como se uma não dependesse da outra, e principalmente fez algumas máscaras caírem. Ainda no dia em que Roberto Alvim sofreu a queda, analistas econômicos saíram em defesa da tese segundo a qual as “polêmicas” fazem parte de uma ala do governo que merece ser ignorada, em nome da agenda econômica tocada por Paulo Guedes. A desfaçatez foi bem resumida na charge do Benett publicada na segunda (20). Na Folha, a jornalista Alexa Salomão desmontou esse argumento, afirmando que o mercado opera contra a democracia se a economia melhorar - e aqui temos um problema, porque a economia nem melhora. Outra vertente dessa discussão é sobre a saúde da democracia brasileira num momento em que as instituições são testadas diariamente. No Estadão, Carlos Pereira escreveu que “o sistema de freios e contrapesos na Constituição permanece operando em pleno vapor”. Porém, como rebateu o cientista político Cláudio Couto, o estresse máximo permanente a que estão sendo submetidas tende gradativamente a desgastá-las. Por fim, Celso de Barros escreveu na Folha que as instituições podem até estar colocando freios em Bolsonaro, mas é inegável que Bolsonaro atenta contra a democracia, e isso só é tolerado porque Guedes está fazendo as reformas econômicas defendidas pelo mercado.

4. A que preço? O problema desta discussão não é apenas o mercado apostar até contra a democracia em favor da melhora nos índices econômicos. O problema é que os índices econômicos não melhoram, enquanto governo e mercado seguem apostando na mesma receita. Semana após semana, os indicadores mostram que a retomada da economia é lenta e a cartilha neoliberal aplicada nos últimos anos não tem dado resultado. Um exemplo foi a reforma trabalhista do governo Temer que, ao contrário de criar milhões de empregos, “legalizou a precarização e a informalidade”, conforme balanço do Dieese. A entidade aponta que os contratos intermitentes representaram módicos 0,13% do estoque de empregos formais em 2018. Além disso, nos últimos dois anos 11% destes contratos não tiveram atividade. Estas políticas vêm resultando no aumento da desigualdade social no mundo todo - e governos como o de Bolsonaro não têm feito nada para combatê-la. Com relação ao PIB, o Instituto Brasileiro de Economia da FGV projeta alta de apenas 0,2% no primeiro trimestre deste ano em relação aos três meses anteriores. De acordo com o Ibre, o ritmo de atividade deve começar 2020 ainda mais fraco, mas mantêm em 2,2% a previsão para o crescimento da economia este ano. Enquanto isso, Paulo Guedes mantém a linha “amanhã será melhor”, prometendo crescimento acelerado quando conseguir dilapidar outro naco do Estado. A ideia da vez é a abertura de licitações públicas para empresas estrangeiras, anunciada no Fórum Econômico de Davos, com o pretexto de combate à corrupção - e a provável consequência de redução do emprego e da atividade econômica dentro do país. Outra ideia tirada da cartola na Suíça foi a do “imposto do pecado”, aumentando ainda mais a carga tributária sobre o consumo, desta vez sobre produtos como cigarro e bebida alcoólica. O Brasil nos obriga a beber, mas nem isso nos deixam.

5. Amazônia. Diante da pressão internacional contra o projeto de destruição da Amazônia, o governo fez como Tino Marcos anunciava para Galvão Bueno: sentiu. A criação do Conselho da Amazônia e da Força Ambiental é um reconhecimento de que a “política ambiental” de Bolsonaro está trazendo prejuízos ao país. Pela primeira vez, o Brasil foi apontado como um dos países responsáveis por adiantar os ponteiros do “relógio do fim do mundo”. Há pelos menos dois meses o governo brasileiro recebeu diretamente de gestores de grandes fundos de investimentos estrangeiros que não mais aplicariam dinheiro no Brasil por causa da política ambiental para a Amazônia. A proposta anunciada, porém, tem dois problemas importantes. O primeiro é que a ideia de uma “Força Nacional” para combater queimadas e desmatamento na Amazônia já foi aventada em 2008, pelo então ministro Carlos Minc, mas descartada antes de ser colocada em prática. Mais efetiva seria a articulação entre as polícias e os órgãos ambientais, exatamente o contrário do que faz Bolsonaro, que prefere uma solução simples para um problema complexo, como alerta o próprio ex-ministro. Além disso, a criação de um conselho a ser comandado pelo vice Hamilton Mourão, um militar, esvazia a capacidade de atuação do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama e evoca a política para a Amazônia do período militar, incluindo as grandes obras e seu potencial destrutivo para a região. A medida também coloca a ala militar do governo para botar freio ou pelo menos monitorar as ações tanto do ministro Ricardo Salles como de Nabhan Garcia, secretário fundiário do Ministério da Agricultura, que pretende regulamentar massivamente a grilagem.

6. O melhor Enem da história. O Ministério da Educação tentou tratar como pontuais os problemas com  o Enem deste ano, anunciado como a melhor edição da história antes de o ovo sair da galinha. O problema é que aparentemente a situação tende a se agravar. Na quarta (22), o MPF recomendou ao governo que suspenda as inscrições do Sisu, sistema do MEC que usa a nota do Enem para a seleção de alunos nas universidades, até que nova conferência dos gabaritos seja realizada. Depois que os resultados do Enem foram liberados, milhares de estudantes foram às redes sociais relatar problemas na correção das provas. O MEC disse ter identificado erro em cerca de 6 mil cartões de prova e anunciou que estava tudo solucionado. Só que obviamente o caso não era tão simples. O MPF estaria recebendo uma enxurrada de reclamações dos candidatos e fez a recomendação ao governo na tentativa de evitar a judicialização do exame. A Justiça Federal do Pará já deu decisão favorável a uma estudante que reclamou do prazo e da falta de publicidade dada pelo MEC para o pedido de correção das provas, e já há pelo menos outras nove ações correndo na Justiça, número que tende a crescer. Já tem universidade anunciando que não vai mais usar o Sisu este ano, o que abre a dúvida sobre a bagunça não ser proposital no contexto da política de destruição da educação. A crise era anunciada: ao longo de 2019 falamos das trocas no comando do Inep, órgão que realiza o Enem, que chegou a ficar sem diretor durante cinco meses, e da prioridade à lacração ideológica praticada pelo ministro Abraham Weintraub. Deu no que deu. Mais uma trapalhada da “ala ideológica” do governo Bolsonaro.

7. Avaliação positiva? Diante deste cenário de lenta recuperação econômica e trapalhadas do governo, é de se perguntar como a avaliação positiva de Bolsonaro foi capaz de crescer. Levantamento CNT/MDA divulgado na quarta (22) mostra que a avaliação positiva do governo Bolsonaro cresceu de 29,4% em agosto de 2019 para 34,5% em janeiro deste ano. A avaliação negativa do governo teve queda: passou de 39,5% para 31%. As entrevistas foram realizadas de 15 a 18 de janeiro, portanto antes da crise do Enem e também sem captar o caso do ex-secretário da Cultura. De qualquer forma, é interessante observar que 36,2% dos entrevistados dizem acreditar que o Brasil melhorou após um ano de governo: as áreas mais bem avaliadas são combate à corrupção, economia e segurança. As piores, saúde, educação e meio ambiente. Porém, uma análise desta e de outras pesquisas mostra que a avaliação positiva de Bolsonaro, apesar do leve crescimento, está menor do que no começo de 2019 - e a avaliação negativa está maior. A íntegra da pesquisa também traz algumas informações interessantes, por exemplo: perguntados se conheciam alguma ação direta do governo Bolsonaro na cidade ou região em que os entrevistados moram, 78,2% disseram que não. Além disso, 38,5% dos entrevistados disseram que as ações para os mais pobres estão piores em relação a governos anteriores. Quer dizer: a divisão do eleitorado nos já consolidados três terços e a percepção de que a economia e a segurança vão bem jogam a favor de Bolsonaro, mas a avaliação não é tão positiva e vários buracos já começam a ficar aparentes. Sem contar que ainda é preciso observar se há uma tendência de melhora nos índices nos demais institutos de pesquisa.

8. Deixaram chegar. Causou alvoroço na semana que passou um vídeo em que a Igreja Universal do Reino de Deus mostra seu projeto de relacionamento com a Polícia Militar. Cultos, distribuição de Bíblias e até café da manhã para policiais estão entre as atividades. Para quem se assustou com o projeto, vale dizer que o susto está um tanto quanto atrasado. Em seu site, a Universal diz que o grupo Universal nas Forças Policiais (UFP) existe desde 2018, mas numa busca rápida no Google é possível encontrar notícias bem anteriores sobre eventos da igreja de Edir Macedo com as corporações. Além disso, esse projeto é realizado em várias regiões do Brasil, como mostra essa notícia sobre a mesma atividade no interior de Santa Catarina. E o projeto de poder das igrejas evangélicas encontra eco no poder público. Nos últimos dias, surgiram notícias como a isenção de IPTU para templos religiosos na capital paulista e o diálogo entre Bolsonaro e Marcelo Crivella para uma costura de apoio nas eleições municipais. Como mostra reportagem de Caroline Oliveira para o Brasil de Fato, a participação de evangélicos na política é um fenômeno que ainda tende a crescer, e crescer ao lado da extrema direita. À esquerda, caberia rever suas propostas e sua capacidade de dialogar com a população hoje cooptada pelas igrejas evangélicas. Outra consequência do avanço evangélico sobre os espaços de poder é o aumento da intolerância religiosa, principalmente com ataques aos praticantes das religiões de matriz africana.

9. Ponto Final: recomendações para ler e ouvir.

Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA: Estratégia da alt-right é fomentar extremismo com ambiguidade entre verdade e ironia, escreve o professor de filosofia da PUC-Rio, Rodrigo Nunes.

Prisões medievais no Brasil: retrato da negligência estatal. Artigo de Marcelo Aith, especialista em Direito Criminal e Direito Público, no site Congresso em Foco.

As pensões vitalícias dos acusados de crimes na ditadura: levantamento inédito da agência Pública mostra que governo paga até hoje pensões de agentes responsabilizados por crimes durante o regime militar.

Do ato aos fatos: a arte produzida sob a sombra do AI-5 restitui verdade factual sobre ponto de virada do autoritarismo, escreve Heloisa Murgel Starling na revista Quatro Cinco Um.

Por que empresas como Amazon e Google estão interessadas em comprar o Serpro? Entrevista com a presidente do SINDPD-PE,  Sheyla Lima, sobre o programa de privatizações do governo federal para empresas como o Serpro e a Dataprev.

Alvim e os nazistas: conversa com o pesquisador Odilon Caldeira Neto sobre paralelos nas falas e ações de membros do governo com fascismos e o próprio nazismo.

Guilhotina: professor da USP, Ricardo Abramovay fala sobre seu mais recente livro “Amazônia, por uma economia do conhecimento da natureza”.

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Edição: Camila Maciel