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2019: no Brasil, a sensação é que os anos não acabam mais

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Protesto contra o corte de verbas no dia 30 de maio, no Largo da Batata, em São Paulo (SP)
Protesto contra o corte de verbas no dia 30 de maio, no Largo da Batata, em São Paulo (SP) - Miguel Schincariol/AFP
Voltar às bases não pode ser apenas uma frase de impacto

“O tempo é rei, a vida é uma lição. E um dia a gente cresce. E conhece nossa essência e ganha experiência. E aprende o que é raiz, então cria consciência” (Charlie Brown Jr.)

O calendário é essa invenção humana que nos faz desejar que o fim de uma contagem de 365 dias seja capaz de promover grandes modificações na vida, como eternos recomeços. E lá vamos, pelas mãos de Janus, para o primeiro dia do primeiro mês novamente.

Acontece que 2019 vem no ciclo dos últimos anos que tenho apelidado de 1968, plagiando, sem qualquer vergonha, o famoso livro do Zuenir Ventura. Isso porque, desde 2016, a sensação quase palpável é de que, no Brasil, os anos não acabam mais, têm sido um continuar de eventos destruidores de esperanças e desejos, em uma sequência de retrocessos incalculáveis do ponto de vista civilizatório. E que escapam a um entendimento agregador.

Após rasgar o véu que vedava a luz à visão do empobrecido universo público, com o golpe jurídico-parlamentar, deveríamos finalmente ter compreendido a fragilidade de nossas instituições, que submergiram ao exercício de maioria, independente do cumprimento de princípios e regras de legalidade e legitimidade.

E daí? Parecia, afinal, apenas seguir dois anos adiante, quando as urnas novamente restabeleceriam a vontade de um país que não se renderia ao desmonte das conquistas.

Mas não foi assim. E foi pior.

Após a condenação e prisão do líder das pesquisas, a eleição de um presidente que publicamente se dizia defensor da tortura e de torturadores, xenófobo, racista e homofóbico, de visão ultraliberal e fundamentalista, nos desafiou a tentar decifrar algo que o povo alemão se pergunta até hoje de certo modo: como uma sociedade que se considera culturalmente avançada sucumbe e elege homens como Hitler e Bolsonaro, tendo ambos afirmado antes como enxergam o mundo, o país e seus cidadãos?

Sobre o Brasil em 2018, parece ainda mais complexo perceber -- sem descartar todas as questões pragmáticas que envolveram as eleições e indicam desvios com conteúdos aliciantes pelas novas tecnologias de informação -- que nossa sociedade fraturada, dividida, polarizada, possui um grande contingente de cidadãos vinculados a uma visão de mundo profundamente escravocrata, visceralmente racista, e moralmente covarde, capaz de relativizar valores humanistas, e presumir uma realidade artificialmente produzida. Nessa percepção, existem os “bons”, que combatem a corrupção e se comportam de acordo com um padrão masculino, branco e heteronormativo, e os “maus”, que querem continuar “roubando dinheiro público” e adotam práticas de comportamento desviante, contra a “moral e os bons costumes”.

Sim, a modernidade nos proporcionou as máquinas de produzir mentiras. Elas não são mérito brasileiro; são fabricadas no mundo inteiro em escala industrial, de forma mais ou menos similar. Algumas mentiras são tão absurdas que não parecem críveis, mas foram aceitas como verdades, espalhadas como uma epidemia. Passada a eleição de 2018, a realidade continua a ser moldada, agora com a utilização do aparato estatal.

Mas, não foram as máquinas de mentir as únicas responsáveis pelo resultado eleitoral. Crer nisso é tão bom, simples e fácil quanto falso. Os motivos são muitos e de diversas ordens.

No passo seguinte, os que receberam o poder em janeiro de 2019 o corrompem diuturnamente. Enquanto consumam a retirada de direitos e promovem a aprovação de reformas liberais, a destruição da máquina pública e a entrega do patrimônio nacional ao capital especulativo internacional, agem como se estivessem eternamente em campanha, boicotando o acesso aos espaços públicos, para impedir o exercício da democracia.

De forma mesquinha agridem artistas e educadores, recriam a censura sobre a cultura e investem contra seus mecanismos, moldam as instituições aos seus particulares interesses ideológicos, com o uso, inclusive, do aparato de repressão e do sistema de Justiça para calar a divergência, as críticas, os movimentos socias, os indivíduos e a sociedade.

Para normalizar o obscurantismo é preciso desmontar os recursos de regulação e crítica, muito importante para a estratégia de privatização selvagem, para a repressão a grupos fragilizados e para a promoção de interesses predatórios da natureza.

Lado a lado com isso ministros manifestam um vazio de ideias, verbalizando frases que se equiparam a falas de lunáticos e fundamentalistas.

A virulência dos últimos anos faz com que cada um aparente ter tido cerca de mil dias, tamanhos os estragos proporcionados. Tudo feito em velocidade tal, que todo esforço pra acompanhar se equipara à circunstância de alguém que se afoga, em luta para voltar a respirar a cada vez que afunda. O trem do retrocesso anda rápido demais, e quem quer freá-lo parece não saber onde foi parar o mecanismo capaz de modificar o trajeto, para evitar o caminho de volta ao passado.

Na virada do calendário, em nossa noção de realidade, que buscamos preencher com esperanças de promessas a alcançar, em um jogo em que impera toda sorte de práticas altamente questionáveis, antidemocráticas e anti-humanistas, urge olhar além do imediato. O bolsonarismo, que é maior que o próprio presidente, aponta para a existência de um conservadorismo reacionário de boa parte da sociedade brasileira.

Claro que isso não responde a tudo. Nem todos os eleitores do “mito” possuem os mesmos valores que ele. Fosse assim não teriam votado, em tempos passados, nas candidaturas de esquerda. Mas é fato que existe uma disputa a ser operada no campo das ideias e a longo prazo.

A realidade ameaçadora instalada no governo federal, que passou a desprezar as ciências e as pesquisas, e a atacar sistematicamente a educação pública e as universidades, reiterando o que ocorre nos governos de extrema direita da Polônia, Hungria e Turquia, também interferindo na nomeação dos dirigentes de universidades e institutos, foi uma constante durante todo o ano.

A única pauta em 2019 que foi capaz de mobilizar grandes segmentos da sociedade brasileira foi a dos cortes na educação. Levou milhares de estudantes, educadores e a população em geral às ruas, ainda que não tenha mantido uma mobilização contínua.

A apatia que impede uma mobilização contínua nos indica que é preciso criar outros paradigmas, entendendo que a engrenagem mudou de formato e os inimigos a enfrentar nessa caminhada não são simples e nada facilitadores. O jogo não é civilizado, mas acobertado por artifícios que o fazem parecer irrepreensível, sedimentado por uma capa de feição legítima. E o jogo tem novos formatos, diferentes jogadores, regras que não são respeitadas e juízes parciais.

Uma boa novidade de 2019 foi o surgimento e consolidação de coletivos e entidades representativas de suas categorias, mas que não fazem defesa corporativa, ao contrário, pautam-se pela defesa da democracia: juristas, economistas, médicos, engenheiros. Sim, tem gente vindo, com a alma e o peito abertos, querendo fazer o novo de novo.

Talvez tenhamos que forjar novas formas de luta. Ou seria exercitar as velhas fórmulas organizativas? O começo pode ser olhar o passado e aprender com os erros, esquecer tantas certezas que acreditamos ter, aceitando, inclusive, que não existe uma receita pronta a seguir, retirando o apego ao horóscopo da política.

Pensar em forjar o futuro em vez de adivinhá-lo.

Voltar às bases não pode ser apenas uma frase de impacto nas incessantes análises de conjuntura. Temos que olhar por cima do imediato, resistir, insistir, falar e principalmente ouvir. Tudo isso com firmeza, humildade, atenção, respeito, alegria, fé e amor. Sem pieguice.

No fim é apenas isso: 365 dias são um ciclo forjado que se finda para que o próximo seja sempre a reinvenção da esperança, a busca da utopia perdida.

Edição: Julia Chequer