Bahia

HISTÓRIAS

Corpo, mente e espírito nutridos no Caruru de sete meninos

Na partilha da preparação do alimento, Vovó Cici conta a história dos Ibejis e dos orixás 

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Como quem vai tecendo fios de uma grande rede de memórias e saberes, Vovó Cici contou, cantou e dançou as histórias de alguns orixás.
Como quem vai tecendo fios de uma grande rede de memórias e saberes, Vovó Cici contou, cantou e dançou as histórias de alguns orixás. - Arquivo pessoal

Chegamos na Fundação Pierre Verger, localizado no Engenho Velho de Brotas, em Salvador (BA), no início da tarde da quinta-feira (26.09), dia que as pessoas católicas comemoram Cosme e Damião, os santos gêmeos protetores das crianças. No dia posterior, 27, é que as pessoas adeptas das religiões de matriz africana ofertam o Caruru dos sete meninos. 
Os preparos do Caruru já tinham começado. Marlene Costa, cozinheira, estava no comando dos preparativos e logo distribuiu faca e quiabos para quem foi chegando.Vovó Cici, contadora de histórias que se dedica, há mais de uma década, a transmitir a sabedoria ancestral afro-brasileira para as crianças e quem mais queira, estava sentada cortando quiabo. Entre uma pausa e outra para dar uma instrução sobre como cortar alguns dos alimentos, dar a benção para quem chegava, ela foi contando como surgiu a oferta de caruru nesta data. 
Como quem vai tecendo fios de uma grande rede de memórias e saberes, Vovó Cici falou sobre os orixás, ressaltando que “todos os orixás reverenciam crianças, porque ninguém nasce adulto”. Explica que o Caruru dos Ibejis é uma forma de reverenciar o Egbé Orum, a sociedade das crianças do céu. 


Depois de cortados os quiabos e do nosso passeio pelo espaço, voltamos para ouvir a história dos Ibejis, filhos gêmeos de Xangô. Sentados em roda, ouvimos e vimos Vó Cici contar como as crianças, com sua criatividade, ajudaram o pai a se livrar das artimanhas de Exu, que roubava sua comida antes dele comer. Entre uma história e outra que foi se costurando, aprendemos os toques e as danças de alguns orixás. 
No iniciozinho da noite, as pessoas foram chegando, a mesa já estava posta. O que Marlene tinha preparado? O prato com quiabo que ajudamos a cortar estava lá. Tinha também vatapá, feijão preto, feijão fradinho, arroz branco, xinxin de galinha, acarajé, abará, banana da terra, pipoca farofa, cocada.
Babá George Hora, líder religioso e professor, explicou, em conversa anterior por telefone, que “não existe uma origem precisa para o que conhecemos como Caruru. Há relatos escritos por missionários na África, no século XVI, chamando um guisado por esse nome”.
Ele conta ainda que “os ingredientes também variavam e até hoje variam, inclusive, por regiões. No interior e no sudeste ainda é possível encontrar o caruru de Taioba, que não leva quiabo ou dendê”. 
Vó Cici explica que tem preceito para preparar cada um deles e que o caruru pode ser ofertado com 3 até 21 pratos, sempre em número ímpar. As crianças são servidas primeiro, diferente de outros momentos, quando são servidos inicialmente os mais velhos. 
Entre uma conversa e outra, algumas pessoas comentam como oferta de caruru nesta data tem ficado mais rara. As hipóteses giram em torno do aumento das religiões evangélicas, especialmente as neo-pentecostais. 
Babá George observa que o “caruru de preceito foi, em especial na Bahia, um ponto de convergências de expressões de religiosidade sincréticas: pessoas do candomblé, católicas ou até mesmo não ligadas a nenhuma dessas expressões, ofertavam, no mês de setembro, esse prato. Fosse para Ibeji, Cosme e Damião/Crispim e Crispiniano/Doum e Alabá, fosse para agradecer o livramento em um parto difícil ou nascimento de gêmeos”.
Terminamos o dia com corpo e alma nutridos, curiosidade aguçada. Com vontade de ouvir mais histórias contadas por Vovó Cici e de comer muitos carurus.

Edição: Elen Carvalho